sexta-feira, 3 de abril de 2015

Alessandra Molina: Havana, 1968. Minuciosa e contida, surpreende tanto quando junta natureza e artifício, paisagem e mente, como quando indaga, “à maneira de um estudo”, algum fragmento da vida.

PÁTRIA DO IDIOMA

O Inverno não tinha terminado
mas nas árvores ecoava o coração de uma fogueira,
o rumor dos rebentos que incham a velha pele
e partem uma a uma as pontas mais finas dos ramos.
Com as suas asas, com o seu breve pousar,
com o seu bico e as suas garras minúsculas,
os pássaros enchiam o ar da cor e dos fragmentos
daquele fogo primaveril
que voltava a fazer os seus primeiros anúncios.
Do mesmo modo, tínhamos o ânimo de uns estudantes
            estrangeiros
que tivessem chegado ao país
um pouco antes da data acordada.
Sobre a mesa
os citrinos mostravam um lustro incandescente
que naquela manhã não nos parecia artificial.
            Convidávamos
e houve até um momento de refutação pouco solene,
alvoroçada,
quando alguém advertiu – tinha-lho dito a sua mãe –
que comer tangerinas em excesso
era a causa de uma doença chamada escorbuto.

O Inverno voltou, açulou,
o rumor dos rebentos apagou-se contra o vento,
os pássaros apareciam a desoras.
Só os frutos, com seus lustrosos brilhos
conseguiam reter aquela promessa da Primavera.


Primavera.
Tangerinas.
Escorbuto.


De que galho secreto, torcido e nodoso, pendiam as
            palavras?
E para onde pendiam com o seu erro ou a sua verdade?
Recordei com vergonha tão fácil refutação

e a sua mãe que há anos estava morta...

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