quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

365 dias com poesia, 27 de fevereiro de 2014 -- COR



COR

as lágrimas
não cessam
as mãos não querem
o tão prometido encontro
os lábios frouxos
esperam pela palavra de perdão
a testa sua
molhando
a tez branca
cor da infâmia
de saber-se
não querido

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

365 dias com poesia, 06 de março de 2014 -- IMPOSSIBILIDADES -- Poema inédito



IMPOSSIBILIDADES

Eu quero aprender
Mas não quero estudar

Eu quero escrever
Mas não quero pensar

Eu quero nadar
Mas não quero me molhar

Eu quero cozinhar
Mas não quero me queimar

Eu quero publicar
Mas não quero revisar

Eu quero sofrer
Mas não quero conviver

365 dias com poesia, 05 de março de 2014 -- VEGETARIANO -- Poema inédito



VEGETARIANO

Entre animais
Humanos

Entre cardeais
Mundanos

Entre boçais
Rezamos

Entre canibais
Vegetarianos

365 dias com poesia, 04 de março de 2014 -- A COLOMBINA -- Poema inédito



A COLOMBINA

Por que
o palhaço
não pode chorar?

Por que
o mestre-sala
não pode descansar?

Por que
a colombina
não pode se afogar?

Por que
a tristeza
não pode sambar?

365 dias com poesia, 03 de março de 2014 -- carnaval possível -- Poema inédito



carnaval possível

O sal do passado passou
Porque quis acreditar no gosto de mel do que pretendo falar
Derrubo o muro pelo futuro do escuro faço discurso
Inventei invento inventarei
Tudo pela felicidade do cheiro pela intensidade do vento do mar de mariscos com vinho
De vinhedos com histórias outras minhas
Tintas tintos carnavais possíveis numa vida impossível porque poética

365 dias com poesia, 02 de março de 2014 -- DAQUI



DAQUI

À memória de Irene Moreira

Para onde eu vou tem papai noel?
Para onde eu vou tem papel
De escrever
Coisas de amor?
Para onde eu vou tem amor?
Para onde eu vou
Existe algo parecido com pavor?
Para onde eu vou posso espirrar
Ou não precisa?
Para onde eu vou
Vou ter amigos
Ou só vizinhos
Mudos, esquisitos?
Para onde eu vou
Papai e mamãe
Também podem ir?
Para onde eu vou
A pomba da paz
Pode parir?
Para onde eu vou
Estarei seguro?
Para onde eu vou
As crianças podem pular o muro para roubar mangas?
Para onde eu vou
Mangás serão revistas bacanas?
Para onde eu vou
Olhos puxados
Serão apenas olhos puxados?
Para onde eu vou
Não existem buracos?
Para onde eu vou
Qualquer um pode ir?
Para onde eu vou
Quando acabar daqui?

365 dias com poesia, 01 de março de 2014 -- Prefácio da parte SOUL POESIA do livro RASCUNHOS POÉTICOS



Prefácio da parte SOUL POESIA do livro RASCUNHOS POÉTICOS


Tarefa difícil fazer caber neste pequeno espaço toda
a intensidade da poesia do Marco. A cada página encontramos
os mais profundos sentimentos ali revelados
de uma maneira tão direta, tão clara, tão emocionada…
Como encontrar palavras que ainda não foram escritas
para aqui deixar sobre esta deliciosa coleção de
poemas? Só mesmo mergulhando fundo em seus versos,
lendo e relendo, deixando-os permear nossas almas e
usando suas próprias palavras para aqui falar da beleza
que guardam as páginas de SOUL POESIA
é a mais pura poesia na vida, é assim que ele vive e
também nos convida a viver, nos faz voar sem ter asas,
porque escreve palavras que amam, nos fazendo enxergar
nossa vida no papel, nos vendo como somos…
impossível não gostar do Marco como ele é, inteiro
com várias partes, querendo a emoção de dividir conosco,
a alma de sua poesia e assim nos alentando e
alimentando a todos, com tamanha generosidade.


Maria Luiza Leite, psicóloga.

365 dias com poesia, 28 de fevereiro de 2014 -- ENQUANTO



ENQUANTO…

A Marcelo Pereira

Enquanto houver sentimento
Enquanto houver nobres momentos
Enquanto houver credo
Enquanto houver amigos por perto…
Enquanto houver olhos abertos…

Quadro: cores rimadas, título dado pelos presenteados, compadres Naná e Pereira


365 dias com poesia, 26 de fevereiro de 2014 -- LUA



LUA

em cada pedaço de fruta
há uma muda
que seca
dará vida a uma nova vida
se um pouco
de luz e água ajudarem

em cada pedaço de noite
há uma lua
que muda
dará vida a uma nova vida
se um pouco
de sofrimento e orvalho ajudarem

em cada pedaço de vida
há uma ingenuidade
que refletindo
dará vida a uma nova vida
se um pouco de olhos e ouvidos ajudarem

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

365 dias com poesia, 25 de fevereiro de 2014 -- acaso -- Poema inédito



acaso

Imagens são apenas uma parte daquilo que trago
O cigarro jogado ali no canto estraga o canto
Rasca minha voz de medo
Sem sossego sigo sério só filmando o tempo ouvindo o silêncio
E de tudo que fixo pinto
Tintas pincéis e atos
Todos errados
Escondidos na pretensão com ação sem direção
Ar pesado em fôlego rápido porque inseguro
Continuo no escuro aplicando tintas na tela na esperança branda ereta
De uma mancha me mostrar o caminho vou indo qual barco à deriva
Esperando tenso um vento chamado acaso

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

365 dias com poesia, 24 de fevereiro de 2014 -- UMA LAGARTA



UMA LAGARTA

Dos meus filhos
Roubei alguns momentos
Que teriam sido importantes na sua educação
Mas em compensação
Ensinei sem saber
A força de fazer as coisas
com paixão e destemor
Fui fundo
mergulhei
Sem saber a profundidade…
Se haviam pedras…
Desfolhei
O caminho
Pisei em algumas plantas…
Fui menino
Na ingenuidade de acreditar
que as pessoas gostam de ver
uma lagarta voar

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Pascoal Soto, sobre o livro "Exercício de ser criança" de Manoel de Barros

(...) Abra-o como quem abre uma caixinha de música ou um pacotinho de suspiros. Eu sei que você não irá se arrepender.

Uma peneira, um caixote e duas latas de goiabada; quem seria capaz de construir um mundo a partir desses objetos? Duas crianças, duas histórias e muita fantasia farão desses objetos aparentemente despropositados personagens de um mundo mágico e, ao mesmo tempo, profundamente real. É Manoel de Barros, no seu melhor estilo, extraindo poesia daquilo que é supostamente vazio; compondo os seus "milagres estéticos" com o carinho de quem pinta uma obra de arte. Através de duas histórias -- "O menino que carregava água na peneira" e "A menina avoada" --, o poeta mergulha no imaginário infantil e nos revela toda a poesia e o lirismo que estão por trás daquilo que os adultos costumam chamar de ingenuidade.

Pascoal Soto, prefácio sobre o livro "Menino do mato" de Manoel de Barros

A "Oficina de desregular a Natureza" de Manoel de Barros continua em franca produção. Setenta e seis anos depois da publicação de seu Poemas concebidos sem pecado, eis que suas ferramentas mágicas -- 1 abridor de amanhecer, 1 prego que farfalha, 1 encolhedor de rios e 1 esticador de horizontes -- continuam a operar maravilhas. A matéria de sua poesia continua a mesma. Os tontos, os passarinhos, o arrebol, Bernardo, as pedras, os gorjeios, o rio, o ermo, o silêncio, o avô, a solidão ... -- tudo e todos estão aqui neste Menino do mato. É como se já o conhecêssemos de muito, mas que Manoel e as suas ferramentas mágicas revelassem o Menino pela primeira vez. Ele está certo quando diz: "Sempre acho que na ponta do meu lápis tem um nascimento". O Menino renasceu novamente, como sempre, como em cada um dos livros que compõem a obre deste "Fazedor de Amanhecer".

Ah, as ferramentas mágicas que resistem ao tempo...

Obrigado por nos dar de volta, Manoel de Barros.

Paulinho Assunção, prefácio do livro "Poemas rupestres" de Manoel de Barros

Amigo Manoel de Barros: faço desta orelha uma carta porque tantas e tantas páginas foram já escritas sobre a sua poesia e tudo o que eu aqui disser sobre ela acabará sendo uma enfadonha repetição. Sem as soberbas da análise, sem os esquadros e os compassos da crítica, prefiro assim tomar a boa e simples trilha do afeto que há nas cartas e na amizade, para lhe dizer uma meia dúzia de palavras, um pouco mais, um pouco menos. Algumas são lembranças, outras são da ordem do encantamento, do sobressalto e do espanto -- sempre renovados, é bom que se diga, ao ler agora, por exemplo, este seu Poemas rupestres.

As palavras que são da lembrança, eu as situo lá pelos começos dos anos 80, quando recebemos, na redação do Suplemento Literário de Minas Gerais, ainda sob o comando de Murilo Rubião, quatro ou cinco edições de seus livros. Edições modestas, semiartesanais. E jamais poderei me esquecer da repercussão das páginas que lhe dedicamos no Suplemento. Que poemas eram aqueles? De onde vinha aquele olhar de fonte, aquele olhar de primeira água? De onde vinham os usos e os engenhos daquele olhar sobre as coisas e as pré-coisas? Quem era aquele capaz de flagrar os primeiros rumores da "infância da língua"? Era o que todos nós perguntávamos.

mais de vinte anos depois, reencontro nes Poemas rupestres o mesmo sobressalto da primeira hora. E o leitor, os leitores (também estou me dirigindo a eles) não terão sobressalto diferente. para dizer a verdade, isto acontece a cada livro seu. este menino que "pegou um olhar de pássaro" e que "contraiu visão fontana", este menino vem de longe, e este menino, sábio dos "desacontecimentos", este é um menino-manoel.E como poderia ser de outro modo se é um menino "com o olhar furado de nascentes" que gosta de "atrelar palavras de rebanhos diferentes", com o intuito de "causar distúrbios no idioma"?

Dizer que nos comovemos com a "perna desprezada" que se perdeu do corpo da formiga -- agora talvez sendo velada no formigueiro -- é dizer muito pouco. Dizer que nos comovemos com esse caranguejo tão "acahante", com ares de "idôneo para flor", até por fim se achar "idôneo para mangue", é teambém muito pouco. Pouco porque há, de repente, na segunda parte do livro, essa fala de Antônio Carancho, uma fala que é todo um tratado de poética: "Eu ouço a fonte dos tontos. (...) Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais/ dentro dele./ Outra pessoa desabre." É preciso dizer: todos nós nos desabrimos em outras pessoas diante de sua poesia.

E muit mais eu aqui escreveria diante desses desenhos de voz e letras rupestres. Rupestres, pois gravados sempre na primeira página-rocha dos primeiros poetas; rupestres, pois concretos, sempre substantivos, já que não há nada mais substantivo do que a letra. "Eu sou dois seres./ O primeiro é fruto do amor de João e Alice./ O segundo é letral: / É fruto da natureza que pensa por imagens, / como diria Paul valéry", você diz. Rupestres, enfim, porque a sua poesia reencena, com a constância sempre necessária de um dia após o outro, de um livro depois do outro, os instantes em que as coisas nascem. Reencenações das pré-coisas. Hoje ou ontem; no Pantanal ou em Altamira e Lascaux. É como se o seu olhar travesso, moleque, peralta, movido pela "canção de ver", bisbilhotasse o por detrás dos biombos onde as palavras trocam de roupa, mudam de pele, chocam seus ovos e saem da muda para o canto. Só que você avisa, com sapiência: "Mas é pelo tato/ que a fonte do amor se abre".

E mais não digo, Manoel. Só ponho aqui, com modos de um afetuoso abraços, um ponto em suspensão nesta carta-orelha ou orelha-carta.

Ana Miranda, prefácio do livro "Tratado geral das grandezas do ínfimo" de Manoel de Barros

Você que vai ler este livro, será como voar deitado nas plumas macias do dorso de um passarinho, e voar. Os seus braços apertados em torno do passarinho vão sentir a pulsação no peito dele que será a batida de todo o sentimento do mundo.

Você vai voar um voo de conhecer um mundo que fica não só lá embaixo na terra, no caracol, no pantanal, nem nas nuvens que correm o céu todo do azul, mas um mundo que nunca esteve em lugar algum, porque está só nas rodas de vidro dos olhos do passarinho porque este passarinho sabe tudo o que não vê, e o que não é, por tanto ser. Nos olhos do passarinho tudo está, e o que é visto lá do alto no voo explica tudo tanto, que o mistério do mistério abrirá o seu coração por palavras que são chaves que abrem amores e lágrima, e as palavras que ainda não nasceram e são todo o impossível da vida e são a vida em orvalho, rastros, ventos, sonhos.

Você sentirá as inexplicáveis explicações que desexplicam o absurdo de ser, ou de se desachar que é. Você escutará o silêncio das pedras, das águas, dos chapéus, e o silêncio do seu próprio voo porque, ahhh sim, depois de voar no voo deste passarinho você vai saber voar sozinho, voc~e vai não saber o que sabe ser. Ele é tão inspirador, o nosso passarinho, que no convite da açucena a noite já estará pronta, prontinha, palavra por palavra, linha por linha. E você, em estado passarinho.


Manoel de Barros sobre o livro "Ensaios fotográficos"

DESPALAVRA

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da
despalavra.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades
humanas.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades
de pássaros.
Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades
de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem humanizar
as águas.
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo
com as suas metáforas.
Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes,
podem ser pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender
o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens,
por eflúvios, por afeto.

Fausto Wolf, prefácio sobre o livro "Retrato do artista quando coisa" de Manoel de Barros

RETRATO DO MANOEL QUANDO POESIA

Conheço Manoel. Não digo que o conheço bem porque bem nem me conheço. Tomávamos cachaça juntos e ouvíamos o povo antes que o poder o houvesse desinventado. Olhava para ele e pensava: "Este é o sujeito que vê uma letra e a entorta. Depois fica vigiando até descobrir para que ela não serve". E a falta de serventia da letra que Manoel entortou descongela o nosso cérebro, atiça nossa visão, nos redimensiona. Manoel fecha os olhos e inventa uma cor que não existe, coisa que só gente como Homero sabia fazer. Desnoita as caturritas e inventa uma nova musical. Tem com os trovões, ventos e crepúsculos,a intimidade que Drummond tinha com fenômenos urbanos. Manoel é incomparável; está longe dos demais poetas. Mais fácil compará-lo a Picasso e De Kooning, os grandes decompositores de artes plásticas que, como ele, desessencializavam a forma até torná-la pura. Suas metáforas cumprem a função das metáforas expandem nossa imaginação.

Quando lançou o premiado Livro sobre nada, nos contou um segredo: nada existiria mesmo que nada existisse e, consequentemente, era tudo. Agora em seu Retrato do artista quando coisa, não contente em descoisificar o mundo, Manoel se coisifica e de poeta passa a ser, ele mesmo, parte integrante da poesia. Como naquele jogo de descobrir o bicho oculto num desenho, podemos descobrir o Manoel no poema. "Acho que vi o Manoel empedrado ali atrás daquela moita". Ou arvorado por um passarinho enquanto se permite se seu próprio outono.

Outro dia sonhei com Manoel olhando para milhões de cacos brilhantes do que já fora uma urna grega. Antes que os artistas de plantão reclamassem, ele fez um gesto mágico e a urna voltou a ser o que era, como um poema romântico. Fazendeiro, poeta, bicho, copisa e finalmente poesia. Neste livro, a paisagem se manoeliza. Ou é Manoel que se paisageia?

Lucia Castello Branco, prefácio do livro "Livro sobre nada" de Manoel de Barros

"De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra -- Como um lápisnuma península."

Antes mesmo que essa imagem-mônada do livro seja exibida aos olhos do leitor, este já terá percebido sua presença silenciosa nas margens do texto de Manoel de Barros. Ali, nos litorais da escrita, um lápis atravessa a paisagem da memória: corta, recorta, assinala, sublinha, rasura. São epígrafes, citações, referências, notas de pé de página que oferecem falsas pistas ao leitor, traçando o movimento de uma segunda mão que escreve, nos espaços paratextuais, o desnome desse seujito poético desacontecido.

Trata-se, afinal, de um livro sobre nada. E nessa dimensão do nada não metafísica, do nada que é coisa nenhuma por escrito, esse sujeito que avança para o começo esbarra, inevitavelmente, numa espécie de umbigo da memória, em que toda significação estanca. Desse lugar nada mais se pode dizer, a não ser reinventando-o, ficcizionalizando-o. Ou, quem sabe, reduzindo-o, através desse gesto que a segunda mão efetua, à sua face coisal, à peremptoriedade da coisa mesma, ou do nada a que a coisa, em sua coisidade, se reduz.

Curiosamente, este é talvez um dos livros de Manoel de Barros em que a primeira pessoa se apresenta de maneira mais evidente: seja quando o poema deixa falar o eu poético, seja quando o poeta cita seus próprios versos de obras anteriores, seja quando o nome do próprio autor se assina em idioleto manoêles archaico. Mas, se o que se escreve é um desnome que aponta, não só para a vacuidade -- o nada --, como para a alteridade -- "o melhor de mim sou Eles" --, o eu afinal não passa de mais um dos retratos que o lápis esquecido na península da memória será capaz de inventar.

Resta-nos ingressar na poética da desaprendizagem proposta pelo autor, buscando, então, desler as letras: adivinhar, diviná-las. Escrevê-las, quem sabe, como um escriba que não sabe ler, mas que se abandona às artes e ofícios de um estilete que sulca no esquecimento e no abandono, o estilo, esse anormal de expressão, estigma que o traço do poeta inscreve na pedra, na relva, na árvore -- nas páginas de um livro sobre nada.

Ênio Silveira, prefácio do livro "O livro das ignorãnças" de Manoel de Barros

SEMPRE NOVO ALQUIMISTA DO VERBO

Com a tendência que a imensa maioria dos seres humanos tem de rotular as pessoas e suas obras, parece ter-se transformado numa espécie de passatempo cultural brasileiro a incessante procura de um epíteto para Manoel de Barros. Por isso mesmo, tanto a crítica literária mais sofisticada quanto os leitores mais diretamente tocados pela magia de seus versos volta e meia se comprazem na tentativa de definí-lo como o "Guimarães Rosa da poesia", o grande poeta das pequenas coisas, "o poeta do Pantanal", "o virtuoso do realismo mágico" et. etc.

É um exercício inútil, talvez gratificante e divertido, mas sem dúvida ocioso, já que, em Manoel de Barros, o todo é maior do que a soma das partes, e o resultado de seu trabalho é desconcertantemente multifacetado, variando do telúrico ao surrealista, da precisão descritiva à mais arrebatadora das metáforas, do lírico ao grotesco, da elegância seiscentista de um soneto camoniano aos mais provocadores efeitos formais e semânticos que se ligam, de certa forma, aos idos de 22.

Mas o poeta, nele, não é...um fingidor. Manoel se vê como um alquimista do verbo, a Moê-lo, dissecá-lo, recriá-lo, sempre à procura de sua "verdez primal", "descascando as palavras até chegar ao caroço, ao lírico seminal de cada uma". Mas, ele esclarece, "palavras têm sedimentos. Têm boa cópia de lodo, usos do povo, cheiros de infância, permanências por antros, ancestralidades, bosta de morcegos etc.". Numa conversa com Guimarães Rosa, rememora numa entrevista que concedeu a Martha Barros, e foi publicada pelo Correio Braziliense, lá pelas tantas diz uma frase que a ambos engloba e irmana;"Precisamos de um escritor como você, Rosa, para frear com a sua estética, sua linguagem calibrada, os excessos de natural. Temos que enlouquecer o nosso verbo, adoecê-lo de nós, a ponto que esse verbo possa transfigurar a antureza. Humanizá-la."

Irmanados, mas distintos um do outro. Rosa é Rosa, Manoel é Manoel. O denominador comum que os coloca em territórios afins, um na prosa, outro na poesia, é esse amor pela palavra, esse instrumento maleável que trabalham até o limite máximo de suas potencialidades semânticas e sonoras, realizando ambos uma obra que transcende ao circunstancial para inserir-se definitivamente, no corpus da melhor literatura brasileira.

Rosa, infelizmente, já se foi, em busca dos grandes sertões e veredas do infinito, Manoel de Barros continua conosco, criando e renovando-se a cada instante, como nos demonstra neste seu novo e admirável livro, onde, num belo poema, nos diz: "Maior que o infinito é o incolor./ Eu sou meu estandarte pessoal./ Preciso do desperdício das palavras para conter-me./ O meu vazio é cheio de inerências./ Sou muito comum com pedras"...

Haverá, pois, algum sentido prático em tentar defini-lo? Será bem melhor que nos deixemos envolver pela sua poesia, que nos encantemos pela sua constante redescoberta das palavras.

365 dias com poesia, 23 de fevereiro de 2014 -- conozco -- Poema inédito



conozco

Se sou eu mesmo o que devo fazer para continuar sendo?
Fingir que não sinto o que sinto?
(louca necessidade de escrever sobre como fingimos!)
Continuar sorrindo um sorriso falso de dentes brancos de anúncio de pasta de dente?
(quando queria esmurrar uma meia dúzia!)
Ir à praia sem pensar em nada apenas pelo forte desejo de recordar como fede a maresia?
(quando preciso mergulhar mais e mais n’água como um peixe livre na gelatina!)
No trabalho, me comportar como se minha presença fosse extremamente importante?
(quando sei que se eu morrer qualquer um terminará aquele processo dificílimo)!
Em casa, acostumar-me a resolver problemas todos sempre de todos sempre me privando do tempo em que penso na gente?
(quando o único problema que temos é nos acostumarmos com nós mesmos sendo nós mesmos, sempre, e sendo, estar sempre com todos nós, sempre!)

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Maria Adélia Menegazzo, prefácio do livro "Concerto a céu aberto para solo de ave" de Manoel de Barros

Concerto a céu aberto para solos de ave começa de modo incerto: "Por tudo que leio nesses apontamentos, pela ruptura de certas frases, fico em dúvida se esses escritos são meros delírios ônticos ou mera sedição de palavras."

Manoel de Barros assume, então, a posição do leitor, distancia-se e aprende com o avô-árvore-gramofone, autor dos cadernos de "apontamentos" e de"andarilho" que compõem este livro, o nada "mero" jogo sonoro e surreal de uma natureza transfeita em poesia. Entre garças, descobrea graça e a ironia do ilimitado das palavras, do "defeito" elementar de ficcionalizar o mundo.

Agindo como transcritor, o poeta entrega ao leitor um concerto de sons vegetais, sons de raízes e de córregos, audíveis apenas no silêncio entre uns e outros. Porque, antes de tudo, Música! cada verso seduz pelo desvio, pelas dissonâncias e revela a revolução das palavras. Sedição! Sedução!

A reedição deste livro de Manoel de Barros vem lembrar ao leitor o imprescindível: quando aves falam com as pedras e rãs com as águas -- é de poesia que estão falando.

Assim, a leitura dos poemas/apontamentos causa tanto mais prazer quanto maior a disposição do leitor para preencher os vazios e descobrir as regras do jogo poético, pois, no canto lírico dos córregos, borboletas cantam Bach, anhuma toca fagote e sabiá, ainda com orvalho na voz, recita o sol.

O efeito tátil-visual das imagens criadas pelo poeta põe em evidência as marcas de uma tradição plástica que vai de Juan Miró a Paul Klee, no que esses artistas apresentam de referências às coisas inúteis e desimportantes. No inominável de Beckett e na ausência de um anjo desses que vivem na sombra, como o de Drummond, o poeta se incumbe de anunciar que já nasceu torto e que aos poetas coube o papel -- antes atribuído às moscas -- de iluminar o silêncio das coisas anônimas.

Do canto das aves, está posto o concerto em pauta.

Lucia Castello Branco, prefácio do livro "O guardador de águas" de Manoel de Barros

Não nos enganemos: as águas que o poeta guarda não são límpidas, não são cristalinas como o que, a princípio, pode ser evocado pelo nome. Diferente do guardador de rebanhos Alberto Caeiro, que se quer pastor bucólico, o guardador de águas não é atraído pela beleza das coisas, mas pela doença delas. Aqui, nessa poesia de líquida matéria, o que se tem é menos o movimento das corredeiras e dos riachos que amudez das águas retidas. As coisas que acontecem aqui acontecem paradas.

Por isso, é da natureza dos mínimos seres aquáticos que o guardador vai nos falar. São as larvas, as rãs, os escorpiões de areia, os seres que habitam a líquida matéria. E, menos que personagens, menos que objetos evocados pela voz do guardador, esses seres são, eles próprios, a coisa que pulsa, que fala, que faz a poesia de Manoel de Barros: "ele me coisa, ele me rã, ele me árvore", dirá o poeta, mais tarde, em suas ignorãças.

Água de palavra. Água de letra. Água de escrita. É possível escrever na água? Em Dialeto-Rã, este livro se escreve. São macerações de sílabas, inflexões, elipses, refegos, o que ouvimos, quando ouvimos não apenas o guardador mas as águas que ele guarda.

Mas não nos apressemos: as águas aqui não correm, antes escorrem, mornas, no ritmo dos pântanos, ou no olhar mudo de Bernardo, que parece querer dizer, como um dia nos disse o guardador Caeiro de rebanhos: "o único sentido íntimo das coisas/É elas não terem senti íntimo nenhum".

Se as coisas são as coisa e mais nada, o ofício do poeta será não exatamente falar delas, mas deixá-las falar nele, e só depois escrever, entre o coaxo e o arrulo, essa poesia de líquida matéria.

Por isso, não o compreendamos rápido demais. Porque, se a líquida matéria é água de escrita, ela é também aquilo que não se guarda, aquilo que não se retém: panos podres, criames de insetos, couros, gravetos, pedras, ossarais de peixes, cacos de vidro etc.

Cabe ao poeta, então, escrever o que sobra das águas que escorrem: húmus, barro, dejetos. Escrever o que sobras das águas e vai apodrecer nas margens: o resto. Disso sabe bem o guardador: que a água escreve, que o húmus faz poesia, que o resto é literatura.


Douglas Diegues, prefácio do livro "Livro de pré-coisas" de Manoel de Barros

GOZO VIVIFICANTE

Em um belo ensaio intitulado "Para llegar a Lezana Lima", Júlio Cortázar afirma que, em seus melhores momentos, a escrita paradisíaca do Etrusco de La Nabana Vieja é "uma cerimônia, algo que preexiste a toda leitura com fins e modos literários..." Segundo Cortázar, uma obra como aquela não era para ser lida, mas consultada, linha por linha, incorporada, oráculo de papel, repleto de revelações e outros signos.

O Livro de pré-coisas, onde o poeta Manoel de Barros nos entrega o Pantanal mais íntimo, essencial, invisível, anônimo, secreto e primordial, em seus momentos de alta irradiação poética é como uma cerimônia solar, anterior a toda leitura com fins e modos literários.

Além de escrito para durar, como queria Pound, não para vender depressa, este livro dentro do livro é também viagem que nos viaja, caminhos, descaminhos, do oco do Pantanal ao oco do Pantanal.

Através do poeta, conhecemos Bernardo, nosso avô poético, um "ser que não conhece ter", nem necessita "inventar remédios para ficar mais inteiro". Guiados pelos dois, vamos descobrindo que o Pantanal, assim como a linguagem poética própria de Barros, não tem limites.

Nesse inventário polifônico do Pantanal, paisagem em estado contínuo de germinação e decomposição, nem Barros nem Bernardo omitem nada do que seja desimportante: tântricos tatus e tatuas, desevidências, dálias lésbicas, e o caldo de piranha, soconusco do Xaraés, que, segundo eles, "devia ficar no altar".

Com o poeta, e com Bernardo, vamos decifrando os rios lúbricos, as ruas de água, as flores lassas, sobrados pobres florindo, o brando das garças, o latim dos sapos, a escritura da lesma, a caligarfia da chuva, o sânscrito dos socós, traduções de borboletas, palavras de água, ainda não registradas em dicionário, biografias de urubus.

Guiados pelos dois, vamos descobrindo, sempre pela primeira vez, o Agroval, onde a poesia e a prosa copulam até o gozo das larvas, micróbios e embriões, armaus, tênias implumes, até a festa uterina das blástulas e gástulas, sementes e ovas, baile placentário, inaugural, dos protozoários e algas opalinas.

caderno de orgasmos frásicos em estado de sol e garças, o Livro de pré-coisas é gozo vivificante e húmus generoso para os próximos séculos.

Paus-bananas, paus-rodados, chiquitanos, babaruches, brasiguaios, corumbás, lobisomens, peixes-cachorros, cágados, arejantes minhocas, girinos de olhinhos de feto, o Livro de pré-coisas nos viaja, feliz, nosos origem de gozo, flor e gosma!

Sérgio Medeiros, prefácio do livro "Arranjos para assobio" de Manoel de Barros

O APOGEU DE UM POETA

Este livro traz um glossário (que não é um mero apêndice, mas, oh, contradição!, a espinha dorsal da obra) em que Manoel de Barros define o termo poeta como: "Espécie de um vazadouro para contradições". Explicitando talvez um pouco mais essa definição, direi que o poeta (neste caso, o próprio Manoel de Barros) é aquele "sujeito inviável" que rompeu com a chamada lei suprema do pensamento e não acata mais o princípio da identidade, expondo-se às contradições. Segundo o princípio da identidade, A é A, ou seja A = A; segundo o "sujeito inviável", A é B, ou seja A = B. Assim, o leitor irá deparar com versos que são estranhas equações: "Sapo é nuvem neste invento". Ou com "objetos impossíveis", como o glossário citado (um apêndice que não é apêndice, uma vez que foi inserido no "centro" do livro), um "parafuso de veludo", um "alicate cremoso". Ou caramujos-flores, que são um ramo (simultaneamente um "galho" e uma "família") de caramujos...

Coisa invisível, quase-figura, desfigura errante, tudo isso é o poeta, tudo isso é o poema de Manoel de Barros. Como nada mais é o que parece ser, o leitor é constantemente desafiado a rever suas certezas. Assim, nesse poema soberbo que é "Exercícios cadoveos", que arrola "sete" (7 = 6, atenção!) inutensílios retirados da mitologia indígena, a leitura é um "exercício" e pode ser feita em vários sentidos, em várias direções, de baixo para cima, de cima para baixo...Manoel de Barros, com suas contradições, com sua descrença no princípio da identidade ( o sujeito inviável é um pulular de eus, um minhocal de pessoas, bichos, vegetais etc.), instaura uma poética lúdica, aparentemente caótica: a estrofe é frequentemente uma enumeração de substantivos, o verso um fragmento solto, mas, graças a essa quase-figura (ousadia de uma sensibilidade nova e antiga, ao mesmo tempo experimental e mítica), pode-se entrever algo revelador além da lógica da ciência e da filosofia.

Desde que o leitor tente "pular o silêncio", isto é, superar a sua perplexidade inicial, poderá vislumbrar o "traste em flor", essa realidade que não está inteira em nenhum discurso douto ou lógico, mas sim na poesia de Manoel de Barros, que neste livro, parece-me, atingiu o seu apogeu. O apogeu do chão, um chão originário, onde o sabiá de terreiro, o homem que estudava formigas e o menino pantaneiro se reencontram. É como se o poeta, que tão profundamente já falou sobre a loucura e a infância em outros livros, decidisse agora realmente escrever o INVIÁVEL, como um menino doido que desconhecesse a lei suprema do pensamento, mas soubesse tudo da lei suprema da poesia, da poesia lúdica e insana, dois valores que a obra de Manoel de Barros (e essa é apenas uma de suas contribuições à poesia brasileira atual) reinventou.

365 dias com poesia, 22 de fevereiro de 2014 -- medalhas -- Poema inédito



medalhas

A Miles Davis

No sopro!
Miles determinava destinos
Distribuía desígnios
No sopro
Severa emoção em mãos trêmulas
Tênue explosão de satisfação
Vento de sexo num
Orgasmo de cuspe fedendo verdades
Severas cruas escuras raridade
Gravada em discos
Símbolos medalhas de nossas falhas

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Adalberto Müller Jr., prefácio do livro "Matéria de poesia" de Manoel de Barros

EM PLENO USO DA POESIA

"Nossas origens fazem parte de nossa originalidade", disse certa vez o poeta frânces F. Ponge. Da origem de Manoel de Barros muito já se disse e se diz, do menino que, em meio às andanças do pai pelo Pantanal, admirava-se com as árvores, as rãs, as pedras, os caracóis e outros "arquissemas", e que, por isso mesmo, em outras tantas viagens pelo mundo, adquiriu "o vício de amar as coisas jogadas fora". A originalidade do poeta consiste em que, recusando grandes temas (o Sublime), elabora liricamente, com as coisas menores, verdadeiras relíquias de linguagem. Bem ao modo irônico de Rimbaud, ou Duchamps, Manoel é capaz de transformar a matéria mais desimportante em poesia.

Um dos modos dessa transformação consiste no que o próprio MB chama de "desencontro da palavra com a ideia". A frase, seu elemento primordial de trabalho, sintaticamente lógica, é submetida a um desarranjo semântico (a um "ilogismo") pelo encontro inusitado de realidades aparentemente incompatíveis, como em "esfregar pedras na paisagem", ou em "um algibe entupido de silêncio sabe a destroços". Esse procedimento mantém a frase num espaço de tensão permanente entre o obscuro e o iluminante, dando no leitor a sensação de que "quebraram dentro dele um engradado de estrelas".

A partir desse tipo de experiência com a linguagem, Manoel passa a elaborar situações, personagens e pequenas narrativas em que aparecem diversos tipos de "loucos de água e estandarte", andarilhos-poetas que perambulam num mundo às avessas, vivendo numa espécie de terceira margem, entre o mundo e o imundo, entre o primitivo e o civilizado. É o caso, aqui, de um "certo João...tido por concha", capaz de ver "A flauta dos pássaros interpretando os homens". Difícil saber se esse João (que lembra o João Ninguém de Noel Rosa) não é uma das muitas vidas do próprio poeta, que se define alhures como um "minhocal de pessoas" ou "muitas pessoas destroçadas": Mário-pega-sapo, Bernardo, Roupa-Grande, Apuleio e tanto outros.

O leitor encontrará aqui, em Matéria de poesias, muita matéria e muita poesia. Matéria para um novo (um des-) aprendizado das coisas. Poesia para ver o mundo pelo avesso, e o avesso pelo mundo, para que as pessoas possam, "em pleno uso da poesia", funcionar "sem apertar o botão". O resto é luz, é mistério, é encantamento.


Anna Regina Accioly, prefácio do livro "Gramática expositiva do chão" de Manoel de Barros

Em Compêndio para uso dos pássaros, Manoel de Barros se propunha a desaprnder a língua com as crianças para ficar ainda mais livre.

Gramática expositiva do chão veio seis anos depois. Um voo absolutamente ousado entre os vocábulos, criando um novo espaço cubista surreal na linguagem. Aqui, a poesia de Manoel de Barros busca os resíduos rejeitados pela sociedade de consumo, "o que pode ser carregado como papel de vento". A sua Máquina de Chilrear, título emprestado de um quadro de Paul Klee de 1922, costura tudo o que é julgado imprestável e transforma, em seu uso doméstico, em poesia. Até o caramujo com olhos embaçados de noite. O chão, o inútil, os fragmentos desprezados reunidos em pura poesia. o "dão" desse menino que enlouquece o verbo, a palavra, os verbos e os objetos, fazendo, como ele diz, casamentos anômalos entre os vocábulos, numa brincadeira à vera, afirmando que "a poesia é, antes de tudo, um inutensílio"...

A incomparável originalidade da poesia de Manoel de Barros, o domínio do som, do ritmo, dos sentidos, do inútil, dos arquissemas abaixo da linha do horizonte, chão árvore pedra lesma, se repetem neste homem de lata, contaminado de pássaros, de árvores, de rãs. Que foi feito para ser ninguém e nem nunca, musgo, líquen, limo, folha caída amarelada decomposta que vai virar sapato, se transformar numa árvore. Palavra que faz de conta que é simples, mas, ao contrário, é sofisticada, trabalhada, burilada ao ponto de chão. Domada, montada e submetida pelo poeta, e, por isso, imortal. Manoel de Barros descobriu o milagre da multiplicação das leituras: sua poesia não se esgota, e maravilha sempre quem a lê, com encanto impossível de se acabar. E nos transporta e nos leva por descaminhos únicos, em estado de graça. Amém.

Hygia Therezinha Calmon Ferreira, prefácio do liovro "Compêndio para uso dos pássaros" de Manoel de Barros

MANOEL DE BARROS, O POETA DAS ÁGUAS

Em Compêndio para uso dos pássaros, Manoel de Barros não deixa dúvidas quanto a viver em permanente estado de poesia. Creio mesmo que, nos treze poemas que compõem o livro, encontra-se um programa de vida, onde o fazer literário é a chave para o voo sem limites.

Tudo começa num sussurro de versos com a Água-mãe.

Fruto formado, o menino desce ao fundo e retorna, ininterruptamente, carregando, no coração, imagens iluminadas de sol.

Nasce o dia do poeta.

Manoel acorda com o pássaro estelar e começa a escrever seu amor pela palavra, em agradecimento pelo carinho fartamente retribuído.

E se lhe falta matéria, como o Grivo de Guimarães Rosa sai em busca do "quem" de tudo, trnasformado, se necessário, em cigarra, pedra, bicho ou luar, porque pleno de poesia.

O crescimento é interior; e o musgo que cobre o corpo da natureza e de Manoel, unindo compêndio e sinfonia, será a seiva que lhes dará força para cumprir a longa trajetória.

Já se viu que Manoel de Barros é um Iniciado e, talvez por isso, defina a poesia como "os silêncios sem poro". E aqui a mesma voz o reaproxima do Rosa, pela boca de Massacongo, para quem certas coisas são "assuntos dos silêncios". Para ambos, de forma intensa e única, cada qual com sua beleza e vigor.

Em síntese, todos nós ouviremos nossos pássaros e, com os de Manoel de Barros, exerceremos o ato de criação.

Manoel de Barros, sobre o livro "Poesias"

A VOZ DE MEU PAI

Sou um sujeito magro
Nas ci magro.
Estou nos acontecimentosComo num vendaval: dobrado
Recurvo de espanto
E verdes...

Círculo sob arranha-céus.
Vivo debaixo de cubos:
Na direita, na esquerda
De lado, ao sul
Pelo norte...Vou no meio assustado.
Um pequenino ser com a sua morte dentro,
Com seu ombro desabado
E seus braços descidos pelo caos do corpo.

Sou ligado por cordões e outros aparelhos secretos a
um escritório complicado.
Portas mecânicas me subtraem e me devolvem súbito
ao negro asfalto.
Entro e saio do edifício que come meu rosto e o cunha na pedra.
Varo becos, bancos e buzinas.

À noite, porém (ócidade tentacular!)
Me rendo.
Resfolegante como um boi, paro.
Vasta campina azul de água me olha, me contempla,
me aglutina
E suja-me de iodo a roupa...
-- É o mar!
Meu rosto recebe a brisa do mar.

365 dias com poesia, 21 de fevereiro de 2014 -- desespero -- Poema inédito



desespero

A Cauby Peixoto, 80 anos

Cansado de si de mim de dó de todos
Cansado do estorvo de carregar-se em silêncio
Gritou gritou num esforço agigantou-se no urro
Derrubou os muros a murros e surdo chorou
E cantou até a última lágrima de amor

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Manoel de Barros, sobre seu livro "Face imóvel"

PAZ


Esta janela aberta

As cadeira em ordem por volta da mesa

A luz da lâmpada na moringa

Duas meninas que conversam longe...


Paz!

O telefone que descansa

As cortinas azuis que nem balançam


Mas sobre uma cadeira alguém está chorando.

Paz!

Ismael Cardim, prefácio do livro "Poemas concebidos sem pecado" de Manoel de Barros

NASCE UM POETA

Antes de ser Manoel de Barros o poeta escreveu uma autobiografia da infância e deu-lhe um título: Poemas concebidos sem pecado. Parece que foi lá por 1937. Deve ter sido mesmo, porque os passarinhos não mentem.Nem as jias, as lagartixas, os passos-tristes, as sambixugas e os outros viventes da lama e do ínfimo. Estes vieram depois. Mas custa um pouco acreditar que aos vinte anos ele já tivesse o dom. No entanto, sempre houve poetas de vinte anos. Graças aos céus, ou à natureza, mais desistentes do que perseverantes.

Era no tempo em que ele fazia poesia e humorismo numa quase ignorância iluminada: uma quase prosa torta e cheia de energia. Como ele próprio é torto-tortuoso sendo ao mesmo tempo certo como a queda de um pingo de luz entre a treva do corixo e do carrascal. Luzinha que sempre de longe se vê. mas sobretudo não se deixam enganar quando um sorriso despenca das alturas e desce aos nossos lábios para nos consolar. Nesse doce humorismo há uma semente da necessária crueldade que existe na poesia quando não é falsa ou frouxa.

Os tempos passaram e Manoel dobrou o cabo Bojador, passou "além da dor". Leu Fernando Pessoa, o poeta "que só tem costas pra isso"; leu Jorge de Lima, o poeta que exaltou "as pobres coisas"; leu Guimarães Rosa, que por pouco não o maluqueceu de vez. Mas já pagou essas e outras dívidas.

No entanto, é preciso dizer com Cesare Pavese no seu último livro O ofício de viver: "Não é belo ser criança, belo é, na velhice, lembrar do tempo em que éramos crianças."

É assim que a nossa memória exerce a caridade: amenizando aquilo que sofremos na infância. mas a poesia de Manoel de Barros não induz ao sofrimento embora nos agarre pels tripas. Depois, nos toma de assalto o coração, mas não para o devorar; só para brincar com ele. A gente não percebe e vai caindo no oco desse mundo desfeito para só no fim juntar as peças e sair enriquecido.

Quando já maduro, Manoel enveredou pelo interior dos seres inúteis, dos lixos, dos ciscos e outras existências aparentadas com o homem. Naturalmente, não esqueceu aquele "menino do mato, sem importância"; antes deve tudo a ele; deve-lhe a visão ora turva ora não dos profetas que foram antes de nós e que nos avisaram dos prazos e dos pecados que nos são impostos. Poesia assim é rara pela originalidade da invenção e pelo milagre da ressureição do que foi vida e vivência.

Ao grande menino Manoel brindamos com nossa taça cheia de azul. Se o azul fosse a cor da promessa e da esperança.

365 dias com poesia, 20 de fevereiro de 2014 -- CIÊNCIA



CIÊNCIA

Se todos temos
no DNA
vivências
Quero escrever
sobre demências
não vividas
Por outros
testadas
Quero testar
As evidências
Da escrita
fazer meu laboratório
de ciências
não-exatas