sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Adalberto Müller Jr., prefácio do livro "Matéria de poesia" de Manoel de Barros

EM PLENO USO DA POESIA

"Nossas origens fazem parte de nossa originalidade", disse certa vez o poeta frânces F. Ponge. Da origem de Manoel de Barros muito já se disse e se diz, do menino que, em meio às andanças do pai pelo Pantanal, admirava-se com as árvores, as rãs, as pedras, os caracóis e outros "arquissemas", e que, por isso mesmo, em outras tantas viagens pelo mundo, adquiriu "o vício de amar as coisas jogadas fora". A originalidade do poeta consiste em que, recusando grandes temas (o Sublime), elabora liricamente, com as coisas menores, verdadeiras relíquias de linguagem. Bem ao modo irônico de Rimbaud, ou Duchamps, Manoel é capaz de transformar a matéria mais desimportante em poesia.

Um dos modos dessa transformação consiste no que o próprio MB chama de "desencontro da palavra com a ideia". A frase, seu elemento primordial de trabalho, sintaticamente lógica, é submetida a um desarranjo semântico (a um "ilogismo") pelo encontro inusitado de realidades aparentemente incompatíveis, como em "esfregar pedras na paisagem", ou em "um algibe entupido de silêncio sabe a destroços". Esse procedimento mantém a frase num espaço de tensão permanente entre o obscuro e o iluminante, dando no leitor a sensação de que "quebraram dentro dele um engradado de estrelas".

A partir desse tipo de experiência com a linguagem, Manoel passa a elaborar situações, personagens e pequenas narrativas em que aparecem diversos tipos de "loucos de água e estandarte", andarilhos-poetas que perambulam num mundo às avessas, vivendo numa espécie de terceira margem, entre o mundo e o imundo, entre o primitivo e o civilizado. É o caso, aqui, de um "certo João...tido por concha", capaz de ver "A flauta dos pássaros interpretando os homens". Difícil saber se esse João (que lembra o João Ninguém de Noel Rosa) não é uma das muitas vidas do próprio poeta, que se define alhures como um "minhocal de pessoas" ou "muitas pessoas destroçadas": Mário-pega-sapo, Bernardo, Roupa-Grande, Apuleio e tanto outros.

O leitor encontrará aqui, em Matéria de poesias, muita matéria e muita poesia. Matéria para um novo (um des-) aprendizado das coisas. Poesia para ver o mundo pelo avesso, e o avesso pelo mundo, para que as pessoas possam, "em pleno uso da poesia", funcionar "sem apertar o botão". O resto é luz, é mistério, é encantamento.


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