quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Ismael Cardim, prefácio do livro "Poemas concebidos sem pecado" de Manoel de Barros

NASCE UM POETA

Antes de ser Manoel de Barros o poeta escreveu uma autobiografia da infância e deu-lhe um título: Poemas concebidos sem pecado. Parece que foi lá por 1937. Deve ter sido mesmo, porque os passarinhos não mentem.Nem as jias, as lagartixas, os passos-tristes, as sambixugas e os outros viventes da lama e do ínfimo. Estes vieram depois. Mas custa um pouco acreditar que aos vinte anos ele já tivesse o dom. No entanto, sempre houve poetas de vinte anos. Graças aos céus, ou à natureza, mais desistentes do que perseverantes.

Era no tempo em que ele fazia poesia e humorismo numa quase ignorância iluminada: uma quase prosa torta e cheia de energia. Como ele próprio é torto-tortuoso sendo ao mesmo tempo certo como a queda de um pingo de luz entre a treva do corixo e do carrascal. Luzinha que sempre de longe se vê. mas sobretudo não se deixam enganar quando um sorriso despenca das alturas e desce aos nossos lábios para nos consolar. Nesse doce humorismo há uma semente da necessária crueldade que existe na poesia quando não é falsa ou frouxa.

Os tempos passaram e Manoel dobrou o cabo Bojador, passou "além da dor". Leu Fernando Pessoa, o poeta "que só tem costas pra isso"; leu Jorge de Lima, o poeta que exaltou "as pobres coisas"; leu Guimarães Rosa, que por pouco não o maluqueceu de vez. Mas já pagou essas e outras dívidas.

No entanto, é preciso dizer com Cesare Pavese no seu último livro O ofício de viver: "Não é belo ser criança, belo é, na velhice, lembrar do tempo em que éramos crianças."

É assim que a nossa memória exerce a caridade: amenizando aquilo que sofremos na infância. mas a poesia de Manoel de Barros não induz ao sofrimento embora nos agarre pels tripas. Depois, nos toma de assalto o coração, mas não para o devorar; só para brincar com ele. A gente não percebe e vai caindo no oco desse mundo desfeito para só no fim juntar as peças e sair enriquecido.

Quando já maduro, Manoel enveredou pelo interior dos seres inúteis, dos lixos, dos ciscos e outras existências aparentadas com o homem. Naturalmente, não esqueceu aquele "menino do mato, sem importância"; antes deve tudo a ele; deve-lhe a visão ora turva ora não dos profetas que foram antes de nós e que nos avisaram dos prazos e dos pecados que nos são impostos. Poesia assim é rara pela originalidade da invenção e pelo milagre da ressureição do que foi vida e vivência.

Ao grande menino Manoel brindamos com nossa taça cheia de azul. Se o azul fosse a cor da promessa e da esperança.

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