sábado, 22 de fevereiro de 2014

Sérgio Medeiros, prefácio do livro "Arranjos para assobio" de Manoel de Barros

O APOGEU DE UM POETA

Este livro traz um glossário (que não é um mero apêndice, mas, oh, contradição!, a espinha dorsal da obra) em que Manoel de Barros define o termo poeta como: "Espécie de um vazadouro para contradições". Explicitando talvez um pouco mais essa definição, direi que o poeta (neste caso, o próprio Manoel de Barros) é aquele "sujeito inviável" que rompeu com a chamada lei suprema do pensamento e não acata mais o princípio da identidade, expondo-se às contradições. Segundo o princípio da identidade, A é A, ou seja A = A; segundo o "sujeito inviável", A é B, ou seja A = B. Assim, o leitor irá deparar com versos que são estranhas equações: "Sapo é nuvem neste invento". Ou com "objetos impossíveis", como o glossário citado (um apêndice que não é apêndice, uma vez que foi inserido no "centro" do livro), um "parafuso de veludo", um "alicate cremoso". Ou caramujos-flores, que são um ramo (simultaneamente um "galho" e uma "família") de caramujos...

Coisa invisível, quase-figura, desfigura errante, tudo isso é o poeta, tudo isso é o poema de Manoel de Barros. Como nada mais é o que parece ser, o leitor é constantemente desafiado a rever suas certezas. Assim, nesse poema soberbo que é "Exercícios cadoveos", que arrola "sete" (7 = 6, atenção!) inutensílios retirados da mitologia indígena, a leitura é um "exercício" e pode ser feita em vários sentidos, em várias direções, de baixo para cima, de cima para baixo...Manoel de Barros, com suas contradições, com sua descrença no princípio da identidade ( o sujeito inviável é um pulular de eus, um minhocal de pessoas, bichos, vegetais etc.), instaura uma poética lúdica, aparentemente caótica: a estrofe é frequentemente uma enumeração de substantivos, o verso um fragmento solto, mas, graças a essa quase-figura (ousadia de uma sensibilidade nova e antiga, ao mesmo tempo experimental e mítica), pode-se entrever algo revelador além da lógica da ciência e da filosofia.

Desde que o leitor tente "pular o silêncio", isto é, superar a sua perplexidade inicial, poderá vislumbrar o "traste em flor", essa realidade que não está inteira em nenhum discurso douto ou lógico, mas sim na poesia de Manoel de Barros, que neste livro, parece-me, atingiu o seu apogeu. O apogeu do chão, um chão originário, onde o sabiá de terreiro, o homem que estudava formigas e o menino pantaneiro se reencontram. É como se o poeta, que tão profundamente já falou sobre a loucura e a infância em outros livros, decidisse agora realmente escrever o INVIÁVEL, como um menino doido que desconhecesse a lei suprema do pensamento, mas soubesse tudo da lei suprema da poesia, da poesia lúdica e insana, dois valores que a obra de Manoel de Barros (e essa é apenas uma de suas contribuições à poesia brasileira atual) reinventou.

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