sábado, 22 de fevereiro de 2014

Maria Adélia Menegazzo, prefácio do livro "Concerto a céu aberto para solo de ave" de Manoel de Barros

Concerto a céu aberto para solos de ave começa de modo incerto: "Por tudo que leio nesses apontamentos, pela ruptura de certas frases, fico em dúvida se esses escritos são meros delírios ônticos ou mera sedição de palavras."

Manoel de Barros assume, então, a posição do leitor, distancia-se e aprende com o avô-árvore-gramofone, autor dos cadernos de "apontamentos" e de"andarilho" que compõem este livro, o nada "mero" jogo sonoro e surreal de uma natureza transfeita em poesia. Entre garças, descobrea graça e a ironia do ilimitado das palavras, do "defeito" elementar de ficcionalizar o mundo.

Agindo como transcritor, o poeta entrega ao leitor um concerto de sons vegetais, sons de raízes e de córregos, audíveis apenas no silêncio entre uns e outros. Porque, antes de tudo, Música! cada verso seduz pelo desvio, pelas dissonâncias e revela a revolução das palavras. Sedição! Sedução!

A reedição deste livro de Manoel de Barros vem lembrar ao leitor o imprescindível: quando aves falam com as pedras e rãs com as águas -- é de poesia que estão falando.

Assim, a leitura dos poemas/apontamentos causa tanto mais prazer quanto maior a disposição do leitor para preencher os vazios e descobrir as regras do jogo poético, pois, no canto lírico dos córregos, borboletas cantam Bach, anhuma toca fagote e sabiá, ainda com orvalho na voz, recita o sol.

O efeito tátil-visual das imagens criadas pelo poeta põe em evidência as marcas de uma tradição plástica que vai de Juan Miró a Paul Klee, no que esses artistas apresentam de referências às coisas inúteis e desimportantes. No inominável de Beckett e na ausência de um anjo desses que vivem na sombra, como o de Drummond, o poeta se incumbe de anunciar que já nasceu torto e que aos poetas coube o papel -- antes atribuído às moscas -- de iluminar o silêncio das coisas anônimas.

Do canto das aves, está posto o concerto em pauta.

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