terça-feira, 8 de maio de 2012

Murilo Mendes -- DESPEDIDA DE ORFEU

É hora de vos deixar, marcos da terra,
Formas vãs do mudável pensamento,
Formas organizadas pelo sonho:
Cantando, vossa finalidade apontei.
É hora de vos deixar, poderes do mundo,
Magnólias da manhã, solene túnica das árvores,
Montanhas de lonjura e peso eterno,
Pássaros dissonantes, castigado sexo,
Terreno vago das estrelas;
Jovem morta que me deste a vida,
Proas de galeras do céu, demônios lúcidos,
Longo silêncio de losangos frios,
Pedras de rigor, penumbras d1água,
Deuses de inesgotável sentido,
Bacantes que destruís o que vos dei;
É hora de vos deixar, suaves afetos,
Magia dos companheiros perenes,
Subterrâneos do clavicórdio, veludações do clarinete,
E vós, forças da terra vindas,
Admiráveis feras de cetim e coxas;
Claro riso de amoras, odor de papoulas cinerárias,
Arquiteturas do mal, poços de angústia,
Modulações da nuvem, inúmeras matérias
pela beleza crismadas:
Cantando, vossa finalidade mostrei.
É hora de vos deixar, sombra de Eurícdice,
- Constelação frouxa da minha insônia -,
Lira que aplacastes o uivo do inferno,
É hora de vos deixar, golfo de lua,
Orquestração da terra, álcoois do mundo,
Morte, longo texto de mil metáforas
Que se lê pelo direito e pelo avesso,
Minha morte, casulo que desde o princípio habito;
É hora de explodir, largar o molde:
Cumprindo o rito antigo,
Volto ao céu original,
Céu debruado de Eurídice;
Homem, criptovivente,
Sonho sonhado pela vida vã,
Cantando expiro.

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