quarta-feira, 15 de maio de 2013

Rubem Braga, crônica: Véspera de S. João no Recife (I)

O que é da terra, é da terra, e fala da terra, João, eu falarei da terra. Ora, João, tu tinhas um vestido de peles de camelo, e uma cinta de couro em volta de teus rins; e a tua comida era gafanhotos e mel silvestre. E a filha de Heroditas bailou, e era linda. E quando disse o que queria neste mundo, o rei entristeceu. Eras a voz que clama no deserto, e clamavas na cadeia. E tua cabeça veio num prato para as mãos da bailarina.

  João, esta geração de homens continua a mesma da qual disse o Senhor: "São semelhantes aos meninos que estão assentados no terreiro, e que falam uns para os outros e dizem: nós temos cantado ao som da gaita, para vos divertir, e vós não bailastes: temos cantado em ar de lamentação, e vós não chorastes."

  João, ontem foi a noite de véspera de teu dia. O povo baiulava ao som de gaitas. Não bailei nem chorei. Estive em Boa Vista, Afogados, Areias, Tigipió, na Estrada de Jaboatão. E estive em campo Grande e Beberibe. E estive, por que não dizer? na zona noturna da ilha do Recife. E em toda a parte o povo te festejava.

  Às vezes chovia furiosamente, às vezes o céu ficava parado e fechado, sem luz e sem chuva. Mas na terra humilde, a noite era sempre a mesma. As casinhas, à margem das ruas esburacadas, estavam alumiadas por lanternas. É um efeito triste, colorido, de uma luz pobre. Nas janelas e nas portas se penduravam as estrelas. Estrelas gordas de papel de cor, com uma luz fraca dentro. Esses balões estrelados, cativos da parede, forneciam imagens nas ruas tãos escuras. As estrelas do céu, por exemplo, haviam descido para a terra, para perto da lama, para as casinhas baixas. E teu retrato, segurando o menino Jesus, estava colado nelas. Pelos quintais enlameados, as fogueiras ardiam. Firmadas por quatro estacas, com folhas de espaço a espaço, ensanguentavam a noite preta. Elas haviam brotado nos oitões, nos manbgues, nos pomares, junto das pontes, ao longo das ruas, pelos fundos dos matos, como flores de fogo na noite preta.

  E os fogos pipocavam. O Recife, João, todos já sabem que é um prato raso. A água é quase irmã da terra, beijando a flor das ruas, e as pontes quase se apoiam na massa líquida, e , para ver a cidade, é preciso andar toda a cidade... (CONTINUA)

Nenhum comentário:

Postar um comentário