sexta-feira, 24 de maio de 2013

Rubem Braga, Crônica: Da Praia (1)

Lembro que olhando pela porta do bar vimos a indecisa aurora que animava as ondas. Erguemo-nos, saímos. O oceano amanhecia como um poderoso trabalhador, a resmungar; ou como grande, vasta mulher, entre murmúrios; ou como árvore imensa num insensível espreguiçamento de ramos densos de folhas. No seio da imensa penumbra nascia um mundo de solidão perante nossos olhos cansados. Era um mundo puro, mas triste e sem fim; um grande mundo que assombrava e amargava o pobre homem perdido na praia. Agora todos haviam partido, eu estava só. Não tinha um amigo, nem mulher, nem casco de canoa, nem pedra na mão. A maneira mais primária e raivosa de comunicação com o mar é ter uma pedra na mão e lançá-la. É um desafio de criança ou de louco; é um apelo.

  Para um homem solitário da praia o mar tem uma vida de espanto. Já nadei em uma praia solitária de mar aberto; tem um gosto de luta e de suicídio; dá uma espécie de raiva misturada com medo. Não apenas imaginamos que naquela praia selvagem grandes peixes vorazes devem se aproximar, e a cada instante julgamos pressentir o ataque de um tubarão; também sentimos, na força da onda que rompemos, uma estranha vida, como se estivéssemos lutando entre os músculos de um imenso animal.

  Para o sul e para o norte a grande praia deserta; baixos morros selvagens e arenosos, num horizonte morto; e o mar sitiando tudo, acuando tudo, com seu tumulto e seus estrondos. Mais de uma vez vagabundei sozinho em canoa pelas costas desertas. Mas montado em canoa temos um domínio: jogamos um jogo com a água e o vento, e ganhamos. O homem só na praia, perante as ondas mais altas que ele, esse é de uma fraqueza patética. Pode desconhecer o mar e seguir caminhando em silêncio pela areia; se o faz, porém, sabe que está fugindo a um insistente desafio. Sua linha de movimento, ao longo da praia, com o mar bramindo a seu flanco, é uma perpendicular constrangedora às grandes linhas de ação da natureza. A espuma das ondas que lhe chega aos pés ou deles se aproxima, ora mais, ora menos, acuando-o de um lado, lembra-lhe que não deve andar em reta, mas se afastando e se abeirando do mar, para ter, nessas oblíquas, uma ilusão de que não se desloca fora do eixo da natureza. Só o vento, não soprando do seio da terra nem do centro do mar, mas empurrando-o pelas costas ou batendo-lhe a cara, pode restaurá-lo no ritmo do mundo. Em purrado pelo vento, ele está de bem com a natureza e se deixa levar, embora com um vago ressentimento. Contrariado pelo vento, ele põe em jogo seu instinto de luta, e sua marcha mais banal tem um secreto sabor heroico. (CONTINUA)

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