terça-feira, 1 de julho de 2014

Ferreira Gullar, FICA O NÃO DITO POR DITO




FICA O NÃO DITO POR DITO


o poema
       antes de escrito
não é em mim
       mais que um aflito
                      silêncio
ante a página em branco


ou melhor
um rumor
branco
          ou um grito
que estanco
          já que

o poeta
          que grita
          erra
e como se sabe
        bom poeta (ou cabrito)
        não berra


o poema
           antes de escrito
antes de ser
            é a possibilidade
            do que não foi dito
            do que está

                            por dizer
e que
       por não ter sido dito
não tem ser
não é
       senão
possibilidade de dizer


mas
      dizer o quê?
dizer
      olor de fruta
cheiro de jasmim?


mas
     como dizê-lo?
Se a fala não tem cheiro?


por isso é que
                dizê-lo
                é não dizê-lo
embora o diga de algum modo
pois não calo


por isso que
                 embora sem dizê-lo
                 falo:
falo do cheiro
                 da fruta
       do cheiro
                  do cabelo
do andar
                  do galo
                  no quintal
e os digo
       sem dizê-los
       bem ou mal


se a fruta
não cheira
       no poema
nem do galo
nele
o cantar se ouve
pode o leitor
      ouvir
(e ouve)
outro galo cantar
noutro quintal
      que houve


(e que
    se eu não dissesse
    não ouviria
já que o poeta diz
      o que o leitor

                          -- se delirasse –
                                            diria)


mas é que
        antes de dizê-lo
não se sabe
uma vez que o que é dito
        não existia
e o que diz
       pode ser que não diria


e
se dito não fosse
jamais se saberá


por isso
é correto dizer
que o poeta
não revela
       o oculto:
inventa
     cria
o que é dito
      (o poema
que por um triz
       não nasceria)


mas
      porque o que ele disse
não existia
       antes de dizê-lo
não o sabia


então ele disse
          o que disse
sem saber o que dizia?
então ele o sabia sem sabê-lo?
então só soube ao dizê-lo?
ou porque se já o soubesse
          não o diria?


é que só o que não se sabe é poesia


assim

               o poeta inventa  
               o que dizer

e que só

               ao dizê-lo
               vai saber

o que

              precisava dizer
ou poderia
              pelo que o acaso dite
e a vida

              provisoriamente
              permite


Ferreira Gullar

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