quarta-feira, 27 de março de 2013

Moacyr Góes sobre Ítalo Rossi

Pela vida afora, carreguamos algumas palavras que achamos saber o que significam mas que, na verdade, estão à espera de sua mais completa tradução.

Muitas vezes somos capazes de falar profundamente sobre elas, na esperança de que talvez a fala faça-nos crer em sua realidade. Com certeza a fala tem este poder. É uma fala de espera. Uma dessas palavras, que mais gosto, que me faz pensar e sobretudo, para mim, é o grande fascínio do teatro, é o ator.

Sempre falei muito nela, escrevi coisas a seu respeito, li dezenas de livros que tentavam decifrá-la e principalmente investi grande parte de meu esforço na sua construção junto aos atores que trabalham comigo há algum tempo.

Mas para minha grande felicidade tive a rara oportunidade, no ano passado, de encontrá-la na figura de gente: Ítalo Rossi.

Com certeza temos atores e atrizes brilhantes, de todas as idades, e que talvez constituam nossa grande possibilidade de criatividade, subversão e desenvolvimento do teatro. São, os atores, o campo de batalha onde as grandes lutas da encenação contemporânea acontecem.

Falo em Ítalo Rossi porque vejo que nele as coisas são um pouco diferentes. Ítalo chegou a um momento em que não é mais alguém que tem como ofício ser ator. Ele é um ator que tem como pesado fardo ser alguém. Em Ítalo a palavra não o nomeia, ao contrário, ele é quem lhe dá sentido. Quando pisa no palco, ou até em qualquer lugar, Ítalo Rossi é um ator muito peculiar. Despregando-se da vida cotidiana, não dando muita atenção ao que chamamos de realidade, ele tem a extraordinária capacidade de nos revelar o sentido da verdade. Coisa que com certeza só a arte dá alguma dimensaõ de existência. Se, como dizia Artaud, é preciso olhar os girassóis de Van Gogh para saber dos girassóis nos campos, é preciso ver Ítalo Rossi no teatro para saber quem somos na vida.

Nunca me satisfizeram as razões que criamos para explicar por que os atores, ou os grandes atores, querem sempre os melhores papéis, as personagens mais conflituadas e ricas em experiências, os grandes textos, a grande palavra. Justificativas como ego muito grande, exercício profissional mais arriscado, orgulho ou vaidade. Acho até que isso existe também, mas o que o ator Ítalo Rossi me revelou é que é uma questão de existência. Muitas vezes de salvação. Para alguém que já se despregou é fundamental criar uma referência interessante, uma persona, e aí a vida torna-se possível. O que fica claro com ele é o movimento percorrido pelo ator: perde-se da vida para tocar nela.

Alguém deveria escrever sobre o processo de criação de Ítalo Rossi: instaurar a verdade no teatro na medida em que se apropria da palavra, da linguagem. Em sua construção ele faz o mesmo percurso da civilização, só que no seu caso o sentido de verdade não se perdeu em espetáculo. Sua busca é a constituição do corpo da palavra, sua materialidade, e a palavra do corpo, sua significância.

Quando Roland Barthes fala de escritura ele precisa a importância do compromisso entre a liberdade e a lembrança e cunha uma expressão magistral: liberdade lembrante.

Ítalo Rossi, impregnado por uma memória que já constituiu-se teatral e tendo a coragem de ainda ousar, traz para si o que poderíamos dizer: ítalo, o ator da liberdade lembrante.

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