quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A DOR -- Pedro Salinas, poeta espanhol

A DOR

Não. Já sei que prefere
corpos recentes, jovens,
que lhe resistam bem
e não se rendam logo.
Ama carnes rosadas,
dentes firmes, ardentes,
olhos que ainda não lembram.
Deseja-os mais. Assim
seu estrago
não se confundirá
com o crestar do tempo,
esfarelando os rostos
como os torsos direitos.
É seu prazer abrir
rugas na pele fresca,
partir o puro vidro
dos olhos intocados
com a lágrima quente.
Vergar a direitura
que há nos corpos perfeitos,
de modo que se torne
mais difícil olhar
o firmamento por eles.
Seus dias sem vitória
são esses em que fere
apenas corpos velhos,
corpos nos quais o tempo
tenha matado muito.
Seu júbilo, seu triunfo
tem uma cor selvagem:
resume-se em surpresa,
em destruir a flor plena,
as vozes no apogeu
do cântico, os mais altos
meios-dias da alma.

Eu sei como lhe agradam
os olhos.
Aqueles que veem longe
saltando bem por cima
de seu céu e seu chão
e que buscam no fundo
mais terno do horizonte
essa greta do mundo
que azul e terra formam
por não poder juntar-se
como Deus lhes mandou.
Essa greta por onde
passam todas as asas
que nos estão batendo
em frente aos muros da alma,
clausuradas, frenéticas.

Eu sei como lhe agradam
os braços. Longos, sólidos,
capazes de levar
sem desânimo,
entre torrentes de anos,
amores pela altura
sem que nunca se quebrem
esses cristais sutis
que são, na sua essência.

Eu sei como lhe agradam
os lábios como as bocas.
Por certo, não os virgens
de beijo: os já beijados
longa, profundamente.
Os mortos sem beijar
não conhecem o fio
duma separação.
O separar-se está
nas bocas que se afastam
contra seu próprio signo
de estar beijando sempre.

E só por isso as bocas
que já beijaram são
as favoritas. Têm
mais vida que deixar:
a vida que confere
a toda boca o dom
de haver sido beijada.

Eu sei como lhe agradam
as almas. E por isso
quando te tenho aqui
e te fito nos olhos,
e a alma te brilha neles
tal como grão de areia
celeste, pura estrela
na sina de atrair
mais que todas as outras,
cobre-te minha vida
e em meu amor te escondo.

Para não seres vista. (Tradução: Carlos Drummond de Andrade).

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