terça-feira, 8 de março de 2011

MIGUEL GULLANDER,em Perdido de volta (7)

"...Debaixo da enorme sombra eu tomei a barbidjáka, soltando, com um pop, a rolha da cabeça duma cana-de-açúcar. E tive uma viagem-em-sonho, daquelas dos feiticeiros.
Tomei-a. Porque me disseram que, entre outras coisas, tal como fazer mulheres darem à luz o fruto que corresponde ao homem com quem se deitam -- a barbidjáka é o remédio para os viajantes: e eu quis e pedi para ver aquilo, a esfera cromada dos sonhos. Aquilo que, sob as imagens, não foi gravado, marcado, queimado, tatuado, rasgado, em sulco, dentro e entre os ficheiros, os tubos de carne do meu cérebro.
Claramente a nossa cabeça é um simulacro, uma fabricação, uma condensação em aço, com sangue de mercúrio sujo -- algo construído e programado numa indústria longínqua. Algo que foi precipitado, em colapso, neste plano de existência.
E, com o mar ao longe, percebo que no início havia as águas, e sobre elas o espírito, fecundador, que pairava -- e do seu encontro, na brisa que é espuma, e as ondas que são o vento, o oceano sabe sonhar -- as miragens, todas as imagens, memórias, todas as glórias, desonras, ódios, amores, detalhes sádicos, ternuras e todas as possíveis combinações, indefinidamente, que num momento flutuam informes e logo ganham corpo como tubarões virtuais num sopro de silêncio -- águas primordiais cm um arco-íris bailando na superfície das inexistentes ondas. Pois as ondas, essas também, são imaginárias, são uma melodia fantasiada -- mas os seus reflexos são o próprio holocausto, um beijo, uma mão, uma evasão...".

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