terça-feira, 14 de agosto de 2012

Enrique Lihn, PORQUE ESCREVI (parte I)

Agora que talvez, num ano de calma,
Pense: a poesia me serviu para isto:
Não pude ser feliz, me foi negado
Mas escrevi.

Escrevi, fui vítima
Da mendicinidade e do orgulho misturados
E justicei também alguns leitores:
estendi a mão em portas que nunca, nunca vi
Uma moça caiu, em outro mundo, a meus pés.
mas escrevi: tive esta rara certeza,
A ilusão de ter o mundo entre as mãos
                            que ilusão mais perfeita! Como um Cristo
                            barroco
                            e toda sua desnecessária crueldade


Escrevi, minha escritura foi como um matagal
de flores ácidas mas afinal de contas, flores
O pão de cada dia das terras áridas:
Uma carapaça de espinhos e raízes.

Da vida tomei todas estas palavras
Como um menino curioso, seixos junto ao rio
As coisas de uma magia, perfeitamente inúteis  ,
Mas que sempre tornam a recobrar seu encanto.
A espécie de loucura com que voa um ancião
Perseguindo palomas imitando-as
Me foi dada em lugar de servir para alguma coisa.
Condenei-me escrevendo para que todos duvidassem
De minha existência real.
(dias de minha escritura, solar do estrangeiro).
Todos os que serviram e os que foram servidos
Digo que passarão porque escrevi
E fazer isso significa trabalhar com a morte
lado a lado, roubar-lhes uns quantos segredos. Em sua origem o rio é uma franja de água
-- ali, por um momento, sequer, a essa
altura --
logo, afinal, um mar que ninguém vê
dos que estão se bracejando a vida.

(continua)

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