domingo, 26 de janeiro de 2014

Iberê camargo, pintor e escritor -- O vampiro mamão (IV)

Mas o estado emocional do coronel não permitia indagações sobre o seu traje de dormir, pois só o motivo da sua presença era importante. Teco, acostumado a obedecer sem discutir nem pensar, aceitou de imediato a versão. E constituiu-se testemunha ocular, convicto, por disciplina. Ficou decidido que fariam as buscas nas noites em lua, no cemitério, que é morada dos vampiros. E assim começou a desatinada procura. Munidos de pás, picaretas, escadas, cordas, algemas e, naturalmente, a estaca com que atravessariam o coração do vampiro (a estaca da velha barraca de campanha do coronel), começaram a violar túmulos de indigentes. Diante do insucesso da busca, da redobrada vigilância do coveiro e do alarma da Irmandade das Almas, enveredaram por outras sendas, examinando outros lugares suspeitos. Dizia-se que o vampiro mamão morava na torre da igreja, debaixo do sino; que era companheiro do vigário. Sugeriram pistas e lembraram defuntos que, em vida, não haviam professado boas crenças. Misturaram vivos e mortos.

   O coronel tomava nota num livro de receitas de bolo da sogra; misturava defuntos e doces. Mandou abater uma caixa-d'água que, pela velhice e abandono, imaginou ser lugar capaz de abrigar vampiros. Estava convencido que o ente antinatural, nos dias difíceis que correm, se contentasse com a escuridão dos porões das velhas casas. Os proprietários de granjas e de casas antigas eram constantemente visitados pelo coronel, que, já sem rodeios, indagava dos antecedentes dos seus antepassados, pedindo atestados de nascimentos, de óbito e escrituras. Remexia sem cerimônia álbuns de família e examinava com lente as fotografias desbotadas, dependuradas nas salas de visitas. Para atingir os sítios mais afastados, usava um velho jipe de pneus carecas e um só farol, o Caolho, que subia e descia ladeiras, zumbindo como um besouro capenga. Tiros reboavam pelo mato. Um disparate! De uma feita fez despir um obeso entregador de leite, para ver se a barriga tinha a forma de barril, como a que vislumbrara na fugaz aparição. O coronel já não se ocupava com a administração do edifício. Até então tinha sido um síndico zeloso e extremamente exigente. Conta-se que certa ocasião mandara o porteiro juntar pontas de cigarro e palitos de fósforo jogados nas áreas, corredores e hall de entrada, para devolvê-los aos seus donos.
   Valendo-se do seu curso de estratégia militar, o coronel passava agora longas horas debruçado sobre a planta da cidade, assinalando com cores diferentes as vias de acesso ao edifício. Como deixasse de lado os cruzamentos (um vampiro jamais enfrenta a cruz), não conseguia determinar o caminho do Mamaqui. Já não levara em consideração a sua natureza de fantasma.
   Apesar da perseguição, o vampiro mamão parece que continuava a frequentar a casa do coronel. Não que o vissem, mas uma presença ali era evidente. Dentro do guarda-roupa de Dona Ermídia fora encontrado um traje de homem de 1800 e uma luva de seis dedos. A mulher do coronel não soube explicar a procedência. Os boatos e as buscas continuavam. Hipotéticos cercos forma apertados, afrouxados e naturalmente rompidos. Com o passar do tempo o coronel foi tornando-se cada vez mais meditabundo; já não torcava palavra com a mulher. Certa noite desapareceu. Nessa noite uma tempestade quebrou vidraças, destelhou casas, desenraizou árvores, arrancou postes, e uma enxurrada desceu pelas ruas aos borbotões.
   Dias depois encontrou-se o corpo do coronel cravado ao chão com uma estaca pela barriga desmesuradamente estufada. Jamais se teve notícias do ordenança. Dizem também, emboara ninguém fale abertamente, nem possa provar ou contestar, que Dona Ermídia teve um filho, que nasceu morto, com focinho de porco e asas de morcego.

Dezembro de 1970

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