sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 31 de janeiro de 2014 -- areia nos olhos -- Poema inédito



areia nos olhos

Onde está o tempo num desenho na beira d’água?
Por que foi feito?
Por quem?
Quais são as rimas implícitas?
O que aquele desenho está nos dizendo?
Sem saber por quê
Fico imaginando que mesmo longe da areia
Escrevo pelo mesmo motivo de quem desenhou na beira d’água
Só não digo...

E você?

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 30 de janeiro de 2014 -- gaivota azul -- Poema inédito



gaivota azul

Branca gaivota de voo sul
Siga voando azul
Planando santo mergulho de luz
Gaivota não se esqueça do sol das sombras da música
De suas asas é que me vem inspiração
Para uma canção de ninar
Uma canção de hámar

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 29 de janeiro de 2014 -- CARNAVAL



CARNAVAL

Não é
que não goste
de carnaval
Não gosto da obrigação
(quase moral)
de me sentir feliz
nesse período do ano
Por que tenho
que me preparar
para estar
com um sorriso no rosto?
Por que não posso
me sentir triste
sentir-me agosto?

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 27 de janeiro de 2014 -- ESFERA



ESFERA

quem
espera
algum dia
alcançará algo?
quem
espera por algo
algum dia
deixará de esperar?
quem
se desespera
algum dia
deixará de se desesperar?
quem
é esfera
algum dia
se enquadrará?

domingo, 26 de janeiro de 2014

Iberê camargo, pintor e escritor -- O vampiro mamão (IV)

Mas o estado emocional do coronel não permitia indagações sobre o seu traje de dormir, pois só o motivo da sua presença era importante. Teco, acostumado a obedecer sem discutir nem pensar, aceitou de imediato a versão. E constituiu-se testemunha ocular, convicto, por disciplina. Ficou decidido que fariam as buscas nas noites em lua, no cemitério, que é morada dos vampiros. E assim começou a desatinada procura. Munidos de pás, picaretas, escadas, cordas, algemas e, naturalmente, a estaca com que atravessariam o coração do vampiro (a estaca da velha barraca de campanha do coronel), começaram a violar túmulos de indigentes. Diante do insucesso da busca, da redobrada vigilância do coveiro e do alarma da Irmandade das Almas, enveredaram por outras sendas, examinando outros lugares suspeitos. Dizia-se que o vampiro mamão morava na torre da igreja, debaixo do sino; que era companheiro do vigário. Sugeriram pistas e lembraram defuntos que, em vida, não haviam professado boas crenças. Misturaram vivos e mortos.

   O coronel tomava nota num livro de receitas de bolo da sogra; misturava defuntos e doces. Mandou abater uma caixa-d'água que, pela velhice e abandono, imaginou ser lugar capaz de abrigar vampiros. Estava convencido que o ente antinatural, nos dias difíceis que correm, se contentasse com a escuridão dos porões das velhas casas. Os proprietários de granjas e de casas antigas eram constantemente visitados pelo coronel, que, já sem rodeios, indagava dos antecedentes dos seus antepassados, pedindo atestados de nascimentos, de óbito e escrituras. Remexia sem cerimônia álbuns de família e examinava com lente as fotografias desbotadas, dependuradas nas salas de visitas. Para atingir os sítios mais afastados, usava um velho jipe de pneus carecas e um só farol, o Caolho, que subia e descia ladeiras, zumbindo como um besouro capenga. Tiros reboavam pelo mato. Um disparate! De uma feita fez despir um obeso entregador de leite, para ver se a barriga tinha a forma de barril, como a que vislumbrara na fugaz aparição. O coronel já não se ocupava com a administração do edifício. Até então tinha sido um síndico zeloso e extremamente exigente. Conta-se que certa ocasião mandara o porteiro juntar pontas de cigarro e palitos de fósforo jogados nas áreas, corredores e hall de entrada, para devolvê-los aos seus donos.
   Valendo-se do seu curso de estratégia militar, o coronel passava agora longas horas debruçado sobre a planta da cidade, assinalando com cores diferentes as vias de acesso ao edifício. Como deixasse de lado os cruzamentos (um vampiro jamais enfrenta a cruz), não conseguia determinar o caminho do Mamaqui. Já não levara em consideração a sua natureza de fantasma.
   Apesar da perseguição, o vampiro mamão parece que continuava a frequentar a casa do coronel. Não que o vissem, mas uma presença ali era evidente. Dentro do guarda-roupa de Dona Ermídia fora encontrado um traje de homem de 1800 e uma luva de seis dedos. A mulher do coronel não soube explicar a procedência. Os boatos e as buscas continuavam. Hipotéticos cercos forma apertados, afrouxados e naturalmente rompidos. Com o passar do tempo o coronel foi tornando-se cada vez mais meditabundo; já não torcava palavra com a mulher. Certa noite desapareceu. Nessa noite uma tempestade quebrou vidraças, destelhou casas, desenraizou árvores, arrancou postes, e uma enxurrada desceu pelas ruas aos borbotões.
   Dias depois encontrou-se o corpo do coronel cravado ao chão com uma estaca pela barriga desmesuradamente estufada. Jamais se teve notícias do ordenança. Dizem também, emboara ninguém fale abertamente, nem possa provar ou contestar, que Dona Ermídia teve um filho, que nasceu morto, com focinho de porco e asas de morcego.

Dezembro de 1970

365 dias com poesia, 26 de janeiro de 2014 -- Navalhas -- Poema inédito



Navalhas

A Roberto Reitor

Falando com um amigo
Sobre os novatos do meu trabalho
De repente me veio a pergunta:
“Nós éramos assim?”
Resposta: “Sim!
Só que agora nós somos os velhos da situação...”
Moral da história: a experiência é um farol virado para trás, como bem disse Pedro Nava.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Iberê camargo, pintor e escritor -- O vampiro mamão (III)

   Dona Ermídia, que suspeitava da maledicência dos amigos, falava das alucinações do coronel demonstrando preocupação por sua saúde. Lamentava não ser mãe. As lágrimas umedeciam-lhe os olhos amendoados.Um gemido de pomba escapava-se dos seus lábios. Tinha um sonho constante, pertinaz, quase uma fixação, uma parada de cena no carretel da memória. Sonhava que era o mar, às vezes um olho-d'água, uma vertente, onde se dessedentavam homens. Às vezes também sonhava que era um odre pendente do pescoço peludo de um são-bernardo, dando de beber a bocas invisíveis em planícies sem fim. No sonho, ou melhor, quase no fim do sonho, se sua duração está no tempo, sentia, ou imaginava sentir, a presença, revelada no hálito forte e na cócega de uma barba, do Amaro, vizinho de apartamento.
    Quando a lua se fazia redonda no céu, um uivo lamentoso enchia as ruas atropeladas do bairro. Dizia-se então que algo se movia como o vento dentro do vento, estalando como uma pilha de odres em disparada. Era o Mamaqui.
   Na noite do flagrante, noite do décimo terceiro ano, o coronel acordara no momento preciso. Dona Ermídia fazia questão de esclarecer que sempre se queixara ao marido daqueles momentos de lassidão, de desfalecimento e peso sobre o corpo. Sempre o sacudia em vão para arrancá-lo do sono quando pressentia que algo a acompanhava.
   A presença do coronel vestido de campeão do mundo em horas tão tardias da noite à porta do seu ordenança foi de estarrecer. Ele ignorava que seu velho chefe, embora o soubesse ardoroso aficionado do futebol, tivesse a ideia infantil de dormir fardado. Muitas vezes, à noite, ouvira gritar gooool! sem jamais reconhecer a poderosa voz de comando do chefe.

Iberê camargo, pintor e escritor -- O vampiro mamão (II)

   Foi assim que o descreveu o coronel, pai de treze neonatos mortos de inanição, embora sua mulher saudável e forte, tivesse leite capaz de nutrir uma manada de terneiros. Para desgraça da sua descendência, o coronel só surpreendeu o vampiro mamão após doze anos de luto contínuo. Lá estão no cemitério do Cati, treze sepulturinhas enfileiradas, quase em forma, como convém aoespírito militar. Até então a perda dos filhos não tinha desanimado o coronel. Bem cevado, já agora estourando dentro da roupa, era visto uma vez por ano a subir a lomba do cemitério, com um caixão de anjo debaixo do braço. Sempre o acompanhava Dona Malvina, madrinha e parteira da defunta prole (ela porfiava em ter um afilhado), com um buquê de flores escolhidas segundo o sexo da criança. Comentou-se que Dona Ermídia, sua mulher, fora de coniv~encia passiva, como vaca mansa que se deixa ordenhar. Os vizinhos fizeram conjeturas, espalharam versões sempre novas e maldosas. Teco, o porteiro, antigo ordenança do coronel, contava, à boca pequena, que Dona Ermídia ficara com o corpo -- especialmente o umbigo -- coberto de manchas arroxeadas, chupões; e que o coronel fora obrigado a usar a espada para desgrudar o vampiro mamão do seio da mulher. Teimava em associar o caso ao inexplicável morticínio das galinhas no sítio do seu Rufo. Coisas do diabo, todas elas de pescoço torcido, traseiro depenado, foram jogadas por cima da cerca! Na ocasião, suspeitara-se de um seminarista que nada tinha de gordo. de outra feita, dizia que o coronel surpreendera o vampiro mamão na cozinha, em cima da mesa, sugando ambos os seios de Dona Ermídia com seu focinho bifurcado; e que o tinha puxado pelas orelhas com tanta força que estas lhe ficaram nas mãos. Explicava que tinha sido um rebuliço, que a cozinha tinha ficado uma sujeira, com móveis e louças quebradas. A Fula -- gata de estimação -- andava seguindo um cheiro que ninguém sentia e um rastro que ninguém via. Ficou arisca. Quando vê Dona Ermídia, arqueia o lombo, eriça o pelo e assopra. -- Os bichos veem coisas!... -- concluía o Teco com ar de mistério. -- Coitada! Mamada...mamada pelo coisa cão! -- comentava com indisfarçável malícia. Ele atiçava as brasas e espalhava a fumaça.

Iberê camargo, pintor e escritor -- O vampiro mamão (I)

O vampiro mamão

Não se creia que o vampiro mamão foi um desses cadáveres ressuscitados, repugnantes, de faces lívidas e presas enormes, gotejantes de sangue, que, através dos séculos, atemorizam os anglo-saxões e se nutrem do seu nobre sangue.

   Concordo que o Mamaqui, como bem o chamaram, sofreu a sede insaciável da sua espécie, alimentou-se da seiva humana e que, como entidade da noite, teve a fobia da luz, o temor do cruzeiro e os demais atributos que lhe são próprios. Como seus iguais, preferiu as noites de breu, sem lua, para errantes caminhadas, onde, aqui e acolá, assaltava mulheres eleitas. Desdentado, sem necessitar de presas perfurantes, agudas e ocas como as das víboras, tinha os lábios macios e flexíveis, que num muxoxo se transformavam numa pequena tromba, num bico chupador. A boca adaptava-se anatomicamente à extração do seu alimento único, o leite. E este ele encontrava abundante nos seios fartos das jovens mães. Dotado de mobilíssimas mandíbulas e elásticas bochechas, que se inflavam na sucção como o papo do sinimbu, aconchegado à vítima, esvaziava-lhe os seios, enchendo aos borbotões o ventre de pipa, enorme e bojudo. A língua longa e estreita, franjada na ponta, lambia gulosa, no preâmbulo do repasto, o bico da mama. De braços abertos, na sua tradicional capa negra, era um grande pássaro que penetrava pelo vão de uma janela ou pela bandeirola de uma porta. Seus passos eram inaudíveis como se o corpo não tivesse peso. Também podia penetrar nos quartos por baixo das portas, ou pelo buraco da fechadura. Ferrolhos, trancas, ratoeiras, experimentados em vão, e muitos outros modernos meios de segurança, assim como anteparos, mostraram-se inúteis para lhe impedir a presença.

365 dias com poesia, 25 de janeiro de 2014 -- MMA -- Poema inédito



MMA

Fala-se tanto da violência do MMA
Mas e uma equipe médica que depois que o paciente morre
Larga os familiares à deriva num hospital branco mas sujo de solidão
Quantos golpes no pulmão mereceria?

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 24 de janeiro de 2014 -- MENTES, BRILHANTE



MENTES, BRILHANTE

Mentes
Brilhante
Mentes tanto
Tão brilhantemente
Que pretendes me enganar?
Mentes
Tão profundamente
Que consegues provar
Que a água tem cor, cheiro e sabor!
Mentes
Pelo amor da inverdade
Querendo
Afirmar
Verdades incongruentes
Mentiras concludentes
Quantas brilhantes mentes
pretendes enganar?

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 23 de janeiro de 2014 -- FUTURA



FUTURA

Me aquece pensar
Que a lembrança tua
Pode me emocionar
Me aquece pensar
Que a esperança
Nua e crua
Possa me fazer continuar
Me aquece
Ter a esperança fruta
Do suco que irá me alimentar
Me aquece
Ter a lembrança bruta
Do sentimento
Que me fará transformar
Minha presente vida
Em futura…

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 22 de janeiro de 2014 -- ESPELHOS



ESPELHOS

Gostamos
de quem somos
e por isso
queremos mudar os outros
Gostamos
de quem fomos
e por isso
queremos mudar os outros
Não gostamos
de quem somos
e por isso
queremos mudar os outros
Não gostamos
de quem fomos
e por isso
queremos mudar os outros

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

RECEPÇÃO AO AMIGO POETA, Resposta ao poema de Manuel Bandeira “Vou-me embora para Pasárgada”



RECEPÇÃO AO AMIGO POETA


Acolho-te em meus domínios
Poeta amigo
Por me fazer sentir rei
Não pelos desígnios de Deus
Ou pelas leis de sucessão
Mas pela emoção
de me considerar merecedor da sua amizade

Aqui nossa idade não nos atrapalhará
Seremos eternos meninos
Sonhando poemas
Brincando de bolas de gude
Multicores
Sapecas calores
Serão amainados por
Belas donzelas
E jabuticabas amarelas
Acolho-te em meus domínios
Poeta amigo
Para como meninos
Declamarmos poemas
Que nos darão tônus muscular
Milenar sensação de plenitude
Será conquistada
Com apenas um mergulho
Na água do mar
Nossa alma
Sairá a voar
Dominando
Nossos sentimentos latentes
Lembranças dos seres viventes
Que nos ensinaram o poder
de amar e ser amados
De perdoar e ser perdoados
Reafirmando a vontade de enfilhar
Encher o mundo de amigos como nós
Sem inveja e desconsideração
Sem punhos cerrados
contra a vida
Exalo, amigo, bem-querer
Acolhendo tua poesia
Como ode à nossa vida!    

Vou-me Embora pra Pasárgada, Manuel Bandeira

Vou-me Embora pra Pasárgada
Manuel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d'água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcalóide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei —

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.

365 dias com poesia, 21 de janeiro de 2014 -- CREIO



CREIO

Creio em Deus
Creio no tamanduá
(sendo formiga)
Creio em mim
Creio em tudo
No nada também
Creio pode crer
Creio para ter crença
Creio para ter freio.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Jean Genet sobre arte

Não compreendo bem o que em arte se chama inovador. Uma obra deveria ser compreendida pelas gerações futuras? Mas por quê? E o que isso significaria? Que elas poderiam utilizá-la? Para quê? Não entendo. mas entendo bem melhor -- ainda que muito obscuramente -- que toda obra de arte que queira alcançar as mais grandiosas proporções deve, com um paciência e uma aplicação infinitas desde os momentos de sua elaboração, descer aos milênios, juntar-se, se possível, à noite imemorial povoada de mortos que irão se reconhecer nessa obra.

Não, não, a obra de arte não se destina às novas gerações. Ela é ofertada ao inumerável povo dos mortos. Que a aceitam. Ou a recusam. Mas esses mortos de que falo nunca foram vivos. Ou então os esqueci. Foram vivos o bastante para que os esqueçamos, já que sua vida tinha por função fazê-los transpor essa tranquila margem de onde aguardam um sinal -- vindo daqui -- e o reconhecem.

"..para os mortos", foi também para que essa multidão inumerável veja enfim o que não pôde ver em vida, quando se sustentava sobre seus próprios ossos. É preciso, portanto, uma arte -- não fluida, ao contrário, bastante dura -- dotada do estranho poder de penetrar esse domínio da morte, de exsudar talvez pelas paredes porosas do reino das sombras. A injustiça -- e nossa dor -- seria demasiado grande se apenas uma delas fosse privada do conhecimento de apenas um de nós, e nossa vitória bastante pobre se nos trouxesse apenas uma glória futura. Ao povo dos mortos, a obra de Giacometti comunica o conhecimento da solidão de cada ser e de cada coisa, e essa solidão é nossa glória mais certa.

Jean Genet sobre Giacometti

Todo homem terá talvez sentido essa espécie de pesar, se não terror, ao ver como o mundo e sua história se mostram enredados num inelutável movimento que se amplia sempre mais e que parece modificar, para fins cada vez mais grosseiros, apenas suas manifestações visíveis. Esse mundo visível é o que é, e nossa ação sobre ele não poderá nunca transformá-lo em outro. Sonhamos então, nostálgicos, com um universo em que o homem, em vez de agir com tanta fúria sobre a aparência visível, se dedicasse a desfazer-se dessa aparência, não somente recusando qualquer ação sobre ela, mas desnudando-se o bastante para descobrir esse lugar secreto, dentro de nós mesmos, a partir do qual seria possível uma aventura humana de todo diferente. Mais precisamente moral, sem dúvida. Mas, afinal, é talvez a essa condição inumana, a esse agenciamento inelutável, que devemos a nostalgia de uma civilização que procuraria se aventurar fora do que é mensurável. É a obra de Giacometti, creio, que torna nosso universo ainda mais insuportável, pois parece que esse artista soube afastar o que perturbava seu olhar para descobrir o que restará do homem quando as máscaras forem retiradas.

365 dias com poesia, 20 de janeiro de 2014 -- fogo frio -- Poema inédito



fogo frio

Ao Tom

Tom
O som da chuva define nossa direção?
Rimas são versos
Versos verão?
O sol o mar a garota
Devem continuar a nos queimar?
Com quantas notas consigo fugir da garoa?
Somos somas divididas pela capacidade de amar?
Amar é possível numa onda de sacrifícios?
O funk carioca queimou seus neurônios como queima meus ouvidos?
O fogo frio sem sentido da música moderna nos espera aí no céu?

domingo, 19 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 19 de janeiro de 2014 -- estrume -- Poema inédito



estrume

A Yayoi Kusama

Em bolas
Que são pequenas cabeças achatadas falos falas sobre o nada do sexo o tudo do mundo interno inteiro de bolinhas vermelhas azuis brancas minhocas de planta de pés chatos de cérebro curvo de olhos de amanhãs compulsivamente não mente na mente drogas lícitas ou ilicitude do amiúde do estrume da hipocrisia que vende revistas novelas e programas políticos ridículos mentindo inclusive sobre arte

sábado, 18 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 18 de janeiro de 2014 -- CARNE



CARNE

porque pedra, esfarelo
porque ferro, enferrujo

porque carne, apodreço
porque amizade, apareço

porque amor, anoiteço
porque paixão, amanheço

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 17 de janeiro de 2014 -- a folha



a folha

A Milton Nascimento

Não adianta
Chorar por sonhos
Sonhos não envelhecem
Nossos olhos torpes
É que cansados se cansam de nos ajudar a sonhar
Em bocas tortas de palavras mal escolhidas
Pretendemos fazer mal a quem?
Sempre podemos escolher entre regar, regrar ou matar

Escolhi plantar a folha com uma semente que chamam palavra que chamo vida

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 16 de janeiro de 2014 -- PUNK VISÃO



PUNK VISÃO

Condicionados somos todos
O tempo todo
Se estivermos passeando num parque
E vislumbrarmos um cara vestido
de catador de algodão
com um pedaço de vidro no dedo mindinho da mão
apostaríamos ser um bluesman?
se fosse um cara de terno
nunca acharíamos que haveria um show de punk rock
Por quê?
Não seria uma atitude mais punk
Se apresentar vestido de executivo mauricinho?
Pense nisso

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 15 de janeiro de 2014 -- flor azul -- Poema inédito





A Lô Borges

Flor azul
Nascimento
No Universo
Rock de Minas
Quinto elemento
Fabuloso menino
Tormento das harmonias
Poesia londrina que rima com
Mil tons

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 14 de janeiro de 2014 -- VELHO GUERREIRO



VELHO GUERREIRO

Mais um risco
não me fará mal
E por isso
vou afirmar
Mais importante
que os craques da filosofia
Aristóteles
Sócrates
Platão
é Chacrinha
Quando disse
Por inteiro:
“Eu vim para confundir
e não para explicar… ”

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 13 de janeiro de 2014 -- ENGRENAGEM



ENGRENAGEM

A Platão

Por obra do destino
Me libertei e descobri a realidade
Vivia de falsidade
Da minha parca imaginação
Pensei saber como o mundo girava
Me reconfortava achar saber de tudo
Mas agora que tudo é descoberta
e que consegui
por sorte
retirar os antolhos
quero ver com meus olhos como é lá fora
Nunca mais voltarei
desculpem a sinceridade
Mas não posso abrir mão de saber
qual é o meu lugar
Nessa engrenagem!

domingo, 12 de janeiro de 2014

365 dias com poesia, 12 de janeiro de 2014 -- FELICIDADE CAVERNOSA



FELICIDADE CAVERNOSA

Ouvi um barulho
Lá de fora
Veio um doido me dizer
que tudo em que acreditamos é mentira
O mundo é enorme
Não é apertado nem escuro
Viu uma grande fogueira
Em cima do mundo
E que existem pessoas
que se movem livres de correntes
Como acreditar nesse indigente?
Não quero ser liberto
já sei meu lugar
no espectro
e não abro mão
da felicidade conhecida.