NOVA CONCEPÇÃO DA
MORTE
Como
ia morrer, foi-lhe dado o aviso
na
carne, como sempre ocorre aos seres vivos;
um
aviso, um sinal, que não lhe veio de fora,
mas
do fundo do corpo, onde a morte mora,
ou
dizendo melhor, onde ela circula
como
a eletricidade ou o medo, na medula
dos
ossos e em cada enzima, que veicula,
no
processo da vida, esse contrário: a morte
(decidida
sem que se saiba de que sorte
nem
por quem nem por que nem por que corte
de
justiça, uma vez que era morte de dentro
não
de fora (como as que causa externa engendra)
Ela
veio chegando ao ritmo do pulso,
sem
pressa nem vagar e sem perder o impulso
que
empurra a vida para o desenlace, para
o
ponto onde afinal o sistema dispara
cortando
a luz do corpo – e a máquina para,
Muito
antes, porém, que ocorra esse colapso,
chega
o aviso da morte, indecifrado, lapsus
linguae,
sinal errado ou mal pronunciado
no
código de sais, ou não compreendido
deliberadamente:
a gente faz ouvido
de
mercador à voz que a morte noticia
pra
não ouvi-la, já que não tem serventia
ouvi-la
e assim saber que a hora está marcada,
Só
para entristecer-se ante a noite estrelada?
Essa
é a morte de dentro, endógena; a de fora,
a
exógena, provém do acaso, se elabora
na
natureza ou então no tráfego ou no crime
e
implacável chega, e nada nos exime
da
injusta sentença, a moral impoluta,
a
bondade, o latim, nossa boa conduta,
nada:
a pedra que cai ou a bala perdida
sem
razão nos atinge e acaba com a vida.
Diz-se
que dessa morte, a notícia também
nos
chega, aleatória antecipação,
na
pronúncia da brisa e dos búzios, além
do
que se lê na carta e nas linhas da mão.
Mas,
se vinda de dentro ou fora, não se altera
essencialmente
o fato: a morte, por si, gera
um
processo que altera as relações de espaço
e
tempo e modifica, inverte, em descompasso,
o
curso natural da vida: uma vertigem
arrasta
tardes, sóis, desperta da fuligem
vozes,
risos, manhãs já de há muito apagadas,
e
as precipita velozmente, misturadas,
para
dentro de si, como fazem as estrelas
ao
morrer, cuja massa, ao ser prensada pelas
forças
de contração da morte, se reduz
a
um buraco voraz de que nem mesmo a luz
escapa,
e assim também com as pessoas ocorre,
E
é por essa razão que quando um homem morre,
alguém
que esteja perto e que apure o ouvido
certamente
ouvirá, como estranho alarido,
o
jorrar ao revés da vida que vivera
até
tornar-se treva o que foi primavera.
Ferreira
Gullar
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