terça-feira, 1 de julho de 2014

Ferreira Gullar, NARCISO E NARCISO




NARCISO E NARCISO


Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
O outro
Pela mesma razão finge também
E ambos acreditam na mentira.

Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
                         E se amam mentindo
                        no fingimento que é necessidade
                          e assim
                          mais verdadeiro que a verdade.

Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
                   E fingem mais
Os dois
Com o mesmo esmero
Com mais e mais cuidado
                   -- e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
                    Se odiando.

O espelho
              Embaciado,
Já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam

                     que o inferno de Narciso
                     é ver que o admiravam de mentira.


Ferreira Gullar

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