domingo, 23 de fevereiro de 2014

Paulinho Assunção, prefácio do livro "Poemas rupestres" de Manoel de Barros

Amigo Manoel de Barros: faço desta orelha uma carta porque tantas e tantas páginas foram já escritas sobre a sua poesia e tudo o que eu aqui disser sobre ela acabará sendo uma enfadonha repetição. Sem as soberbas da análise, sem os esquadros e os compassos da crítica, prefiro assim tomar a boa e simples trilha do afeto que há nas cartas e na amizade, para lhe dizer uma meia dúzia de palavras, um pouco mais, um pouco menos. Algumas são lembranças, outras são da ordem do encantamento, do sobressalto e do espanto -- sempre renovados, é bom que se diga, ao ler agora, por exemplo, este seu Poemas rupestres.

As palavras que são da lembrança, eu as situo lá pelos começos dos anos 80, quando recebemos, na redação do Suplemento Literário de Minas Gerais, ainda sob o comando de Murilo Rubião, quatro ou cinco edições de seus livros. Edições modestas, semiartesanais. E jamais poderei me esquecer da repercussão das páginas que lhe dedicamos no Suplemento. Que poemas eram aqueles? De onde vinha aquele olhar de fonte, aquele olhar de primeira água? De onde vinham os usos e os engenhos daquele olhar sobre as coisas e as pré-coisas? Quem era aquele capaz de flagrar os primeiros rumores da "infância da língua"? Era o que todos nós perguntávamos.

mais de vinte anos depois, reencontro nes Poemas rupestres o mesmo sobressalto da primeira hora. E o leitor, os leitores (também estou me dirigindo a eles) não terão sobressalto diferente. para dizer a verdade, isto acontece a cada livro seu. este menino que "pegou um olhar de pássaro" e que "contraiu visão fontana", este menino vem de longe, e este menino, sábio dos "desacontecimentos", este é um menino-manoel.E como poderia ser de outro modo se é um menino "com o olhar furado de nascentes" que gosta de "atrelar palavras de rebanhos diferentes", com o intuito de "causar distúrbios no idioma"?

Dizer que nos comovemos com a "perna desprezada" que se perdeu do corpo da formiga -- agora talvez sendo velada no formigueiro -- é dizer muito pouco. Dizer que nos comovemos com esse caranguejo tão "acahante", com ares de "idôneo para flor", até por fim se achar "idôneo para mangue", é teambém muito pouco. Pouco porque há, de repente, na segunda parte do livro, essa fala de Antônio Carancho, uma fala que é todo um tratado de poética: "Eu ouço a fonte dos tontos. (...) Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais/ dentro dele./ Outra pessoa desabre." É preciso dizer: todos nós nos desabrimos em outras pessoas diante de sua poesia.

E muit mais eu aqui escreveria diante desses desenhos de voz e letras rupestres. Rupestres, pois gravados sempre na primeira página-rocha dos primeiros poetas; rupestres, pois concretos, sempre substantivos, já que não há nada mais substantivo do que a letra. "Eu sou dois seres./ O primeiro é fruto do amor de João e Alice./ O segundo é letral: / É fruto da natureza que pensa por imagens, / como diria Paul valéry", você diz. Rupestres, enfim, porque a sua poesia reencena, com a constância sempre necessária de um dia após o outro, de um livro depois do outro, os instantes em que as coisas nascem. Reencenações das pré-coisas. Hoje ou ontem; no Pantanal ou em Altamira e Lascaux. É como se o seu olhar travesso, moleque, peralta, movido pela "canção de ver", bisbilhotasse o por detrás dos biombos onde as palavras trocam de roupa, mudam de pele, chocam seus ovos e saem da muda para o canto. Só que você avisa, com sapiência: "Mas é pelo tato/ que a fonte do amor se abre".

E mais não digo, Manoel. Só ponho aqui, com modos de um afetuoso abraços, um ponto em suspensão nesta carta-orelha ou orelha-carta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário