"De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra -- Como um lápisnuma península."
Antes mesmo que essa imagem-mônada do livro seja exibida aos olhos do leitor, este já terá percebido sua presença silenciosa nas margens do texto de Manoel de Barros. Ali, nos litorais da escrita, um lápis atravessa a paisagem da memória: corta, recorta, assinala, sublinha, rasura. São epígrafes, citações, referências, notas de pé de página que oferecem falsas pistas ao leitor, traçando o movimento de uma segunda mão que escreve, nos espaços paratextuais, o desnome desse seujito poético desacontecido.
Trata-se, afinal, de um livro sobre nada. E nessa dimensão do nada não metafísica, do nada que é coisa nenhuma por escrito, esse sujeito que avança para o começo esbarra, inevitavelmente, numa espécie de umbigo da memória, em que toda significação estanca. Desse lugar nada mais se pode dizer, a não ser reinventando-o, ficcizionalizando-o. Ou, quem sabe, reduzindo-o, através desse gesto que a segunda mão efetua, à sua face coisal, à peremptoriedade da coisa mesma, ou do nada a que a coisa, em sua coisidade, se reduz.
Curiosamente, este é talvez um dos livros de Manoel de Barros em que a primeira pessoa se apresenta de maneira mais evidente: seja quando o poema deixa falar o eu poético, seja quando o poeta cita seus próprios versos de obras anteriores, seja quando o nome do próprio autor se assina em idioleto manoêles archaico. Mas, se o que se escreve é um desnome que aponta, não só para a vacuidade -- o nada --, como para a alteridade -- "o melhor de mim sou Eles" --, o eu afinal não passa de mais um dos retratos que o lápis esquecido na península da memória será capaz de inventar.
Resta-nos ingressar na poética da desaprendizagem proposta pelo autor, buscando, então, desler as letras: adivinhar, diviná-las. Escrevê-las, quem sabe, como um escriba que não sabe ler, mas que se abandona às artes e ofícios de um estilete que sulca no esquecimento e no abandono, o estilo, esse anormal de expressão, estigma que o traço do poeta inscreve na pedra, na relva, na árvore -- nas páginas de um livro sobre nada.
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