domingo, 23 de fevereiro de 2014

Ênio Silveira, prefácio do livro "O livro das ignorãnças" de Manoel de Barros

SEMPRE NOVO ALQUIMISTA DO VERBO

Com a tendência que a imensa maioria dos seres humanos tem de rotular as pessoas e suas obras, parece ter-se transformado numa espécie de passatempo cultural brasileiro a incessante procura de um epíteto para Manoel de Barros. Por isso mesmo, tanto a crítica literária mais sofisticada quanto os leitores mais diretamente tocados pela magia de seus versos volta e meia se comprazem na tentativa de definí-lo como o "Guimarães Rosa da poesia", o grande poeta das pequenas coisas, "o poeta do Pantanal", "o virtuoso do realismo mágico" et. etc.

É um exercício inútil, talvez gratificante e divertido, mas sem dúvida ocioso, já que, em Manoel de Barros, o todo é maior do que a soma das partes, e o resultado de seu trabalho é desconcertantemente multifacetado, variando do telúrico ao surrealista, da precisão descritiva à mais arrebatadora das metáforas, do lírico ao grotesco, da elegância seiscentista de um soneto camoniano aos mais provocadores efeitos formais e semânticos que se ligam, de certa forma, aos idos de 22.

Mas o poeta, nele, não é...um fingidor. Manoel se vê como um alquimista do verbo, a Moê-lo, dissecá-lo, recriá-lo, sempre à procura de sua "verdez primal", "descascando as palavras até chegar ao caroço, ao lírico seminal de cada uma". Mas, ele esclarece, "palavras têm sedimentos. Têm boa cópia de lodo, usos do povo, cheiros de infância, permanências por antros, ancestralidades, bosta de morcegos etc.". Numa conversa com Guimarães Rosa, rememora numa entrevista que concedeu a Martha Barros, e foi publicada pelo Correio Braziliense, lá pelas tantas diz uma frase que a ambos engloba e irmana;"Precisamos de um escritor como você, Rosa, para frear com a sua estética, sua linguagem calibrada, os excessos de natural. Temos que enlouquecer o nosso verbo, adoecê-lo de nós, a ponto que esse verbo possa transfigurar a antureza. Humanizá-la."

Irmanados, mas distintos um do outro. Rosa é Rosa, Manoel é Manoel. O denominador comum que os coloca em territórios afins, um na prosa, outro na poesia, é esse amor pela palavra, esse instrumento maleável que trabalham até o limite máximo de suas potencialidades semânticas e sonoras, realizando ambos uma obra que transcende ao circunstancial para inserir-se definitivamente, no corpus da melhor literatura brasileira.

Rosa, infelizmente, já se foi, em busca dos grandes sertões e veredas do infinito, Manoel de Barros continua conosco, criando e renovando-se a cada instante, como nos demonstra neste seu novo e admirável livro, onde, num belo poema, nos diz: "Maior que o infinito é o incolor./ Eu sou meu estandarte pessoal./ Preciso do desperdício das palavras para conter-me./ O meu vazio é cheio de inerências./ Sou muito comum com pedras"...

Haverá, pois, algum sentido prático em tentar defini-lo? Será bem melhor que nos deixemos envolver pela sua poesia, que nos encantemos pela sua constante redescoberta das palavras.

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