sábado, 22 de fevereiro de 2014

Lucia Castello Branco, prefácio do livro "O guardador de águas" de Manoel de Barros

Não nos enganemos: as águas que o poeta guarda não são límpidas, não são cristalinas como o que, a princípio, pode ser evocado pelo nome. Diferente do guardador de rebanhos Alberto Caeiro, que se quer pastor bucólico, o guardador de águas não é atraído pela beleza das coisas, mas pela doença delas. Aqui, nessa poesia de líquida matéria, o que se tem é menos o movimento das corredeiras e dos riachos que amudez das águas retidas. As coisas que acontecem aqui acontecem paradas.

Por isso, é da natureza dos mínimos seres aquáticos que o guardador vai nos falar. São as larvas, as rãs, os escorpiões de areia, os seres que habitam a líquida matéria. E, menos que personagens, menos que objetos evocados pela voz do guardador, esses seres são, eles próprios, a coisa que pulsa, que fala, que faz a poesia de Manoel de Barros: "ele me coisa, ele me rã, ele me árvore", dirá o poeta, mais tarde, em suas ignorãças.

Água de palavra. Água de letra. Água de escrita. É possível escrever na água? Em Dialeto-Rã, este livro se escreve. São macerações de sílabas, inflexões, elipses, refegos, o que ouvimos, quando ouvimos não apenas o guardador mas as águas que ele guarda.

Mas não nos apressemos: as águas aqui não correm, antes escorrem, mornas, no ritmo dos pântanos, ou no olhar mudo de Bernardo, que parece querer dizer, como um dia nos disse o guardador Caeiro de rebanhos: "o único sentido íntimo das coisas/É elas não terem senti íntimo nenhum".

Se as coisas são as coisa e mais nada, o ofício do poeta será não exatamente falar delas, mas deixá-las falar nele, e só depois escrever, entre o coaxo e o arrulo, essa poesia de líquida matéria.

Por isso, não o compreendamos rápido demais. Porque, se a líquida matéria é água de escrita, ela é também aquilo que não se guarda, aquilo que não se retém: panos podres, criames de insetos, couros, gravetos, pedras, ossarais de peixes, cacos de vidro etc.

Cabe ao poeta, então, escrever o que sobra das águas que escorrem: húmus, barro, dejetos. Escrever o que sobras das águas e vai apodrecer nas margens: o resto. Disso sabe bem o guardador: que a água escreve, que o húmus faz poesia, que o resto é literatura.


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