sábado, 22 de fevereiro de 2014

Douglas Diegues, prefácio do livro "Livro de pré-coisas" de Manoel de Barros

GOZO VIVIFICANTE

Em um belo ensaio intitulado "Para llegar a Lezana Lima", Júlio Cortázar afirma que, em seus melhores momentos, a escrita paradisíaca do Etrusco de La Nabana Vieja é "uma cerimônia, algo que preexiste a toda leitura com fins e modos literários..." Segundo Cortázar, uma obra como aquela não era para ser lida, mas consultada, linha por linha, incorporada, oráculo de papel, repleto de revelações e outros signos.

O Livro de pré-coisas, onde o poeta Manoel de Barros nos entrega o Pantanal mais íntimo, essencial, invisível, anônimo, secreto e primordial, em seus momentos de alta irradiação poética é como uma cerimônia solar, anterior a toda leitura com fins e modos literários.

Além de escrito para durar, como queria Pound, não para vender depressa, este livro dentro do livro é também viagem que nos viaja, caminhos, descaminhos, do oco do Pantanal ao oco do Pantanal.

Através do poeta, conhecemos Bernardo, nosso avô poético, um "ser que não conhece ter", nem necessita "inventar remédios para ficar mais inteiro". Guiados pelos dois, vamos descobrindo que o Pantanal, assim como a linguagem poética própria de Barros, não tem limites.

Nesse inventário polifônico do Pantanal, paisagem em estado contínuo de germinação e decomposição, nem Barros nem Bernardo omitem nada do que seja desimportante: tântricos tatus e tatuas, desevidências, dálias lésbicas, e o caldo de piranha, soconusco do Xaraés, que, segundo eles, "devia ficar no altar".

Com o poeta, e com Bernardo, vamos decifrando os rios lúbricos, as ruas de água, as flores lassas, sobrados pobres florindo, o brando das garças, o latim dos sapos, a escritura da lesma, a caligarfia da chuva, o sânscrito dos socós, traduções de borboletas, palavras de água, ainda não registradas em dicionário, biografias de urubus.

Guiados pelos dois, vamos descobrindo, sempre pela primeira vez, o Agroval, onde a poesia e a prosa copulam até o gozo das larvas, micróbios e embriões, armaus, tênias implumes, até a festa uterina das blástulas e gástulas, sementes e ovas, baile placentário, inaugural, dos protozoários e algas opalinas.

caderno de orgasmos frásicos em estado de sol e garças, o Livro de pré-coisas é gozo vivificante e húmus generoso para os próximos séculos.

Paus-bananas, paus-rodados, chiquitanos, babaruches, brasiguaios, corumbás, lobisomens, peixes-cachorros, cágados, arejantes minhocas, girinos de olhinhos de feto, o Livro de pré-coisas nos viaja, feliz, nosos origem de gozo, flor e gosma!

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