EM PLENO USO DA POESIA
"Nossas origens fazem parte de nossa originalidade", disse certa vez o poeta frânces F. Ponge. Da origem de Manoel de Barros muito já se disse e se diz, do menino que, em meio às andanças do pai pelo Pantanal, admirava-se com as árvores, as rãs, as pedras, os caracóis e outros "arquissemas", e que, por isso mesmo, em outras tantas viagens pelo mundo, adquiriu "o vício de amar as coisas jogadas fora". A originalidade do poeta consiste em que, recusando grandes temas (o Sublime), elabora liricamente, com as coisas menores, verdadeiras relíquias de linguagem. Bem ao modo irônico de Rimbaud, ou Duchamps, Manoel é capaz de transformar a matéria mais desimportante em poesia.
Um dos modos dessa transformação consiste no que o próprio MB chama de "desencontro da palavra com a ideia". A frase, seu elemento primordial de trabalho, sintaticamente lógica, é submetida a um desarranjo semântico (a um "ilogismo") pelo encontro inusitado de realidades aparentemente incompatíveis, como em "esfregar pedras na paisagem", ou em "um algibe entupido de silêncio sabe a destroços". Esse procedimento mantém a frase num espaço de tensão permanente entre o obscuro e o iluminante, dando no leitor a sensação de que "quebraram dentro dele um engradado de estrelas".
A partir desse tipo de experiência com a linguagem, Manoel passa a elaborar situações, personagens e pequenas narrativas em que aparecem diversos tipos de "loucos de água e estandarte", andarilhos-poetas que perambulam num mundo às avessas, vivendo numa espécie de terceira margem, entre o mundo e o imundo, entre o primitivo e o civilizado. É o caso, aqui, de um "certo João...tido por concha", capaz de ver "A flauta dos pássaros interpretando os homens". Difícil saber se esse João (que lembra o João Ninguém de Noel Rosa) não é uma das muitas vidas do próprio poeta, que se define alhures como um "minhocal de pessoas" ou "muitas pessoas destroçadas": Mário-pega-sapo, Bernardo, Roupa-Grande, Apuleio e tanto outros.
O leitor encontrará aqui, em Matéria de poesias, muita matéria e muita poesia. Matéria para um novo (um des-) aprendizado das coisas. Poesia para ver o mundo pelo avesso, e o avesso pelo mundo, para que as pessoas possam, "em pleno uso da poesia", funcionar "sem apertar o botão". O resto é luz, é mistério, é encantamento.
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