Caro doutor,
O senhor envia para minha leitura o trabalho que realizou sobre a minha individualidade física e moral e pede autorização para publicá-lo. Li os excertos, interessaram-me sobremaneira, lembrando-me o prazer que eu mesmo gozei nos tão longos e numerosos experimentos que efetuamos juntos; e , naturalmente, dou-lhe de muito bom grado a autorização que deseja, rubricando suas páginas como autênticas e verdadeiras.
Dou-lhe tal autorização, em primeiro lugar, porque só tenho um amor na vida, a verdade, e um só objetivo, produzir o máximo de verdade possível. Tudo que tende a produzir verdade só pode ser excelente. E que vivo interesse desperta um estudo como o seu, estabelecendo, sobre dados insofismáveis, mediante experimentos decisivos, a verdadeira natureza física e psicológica de um escritor ou de um artista! O fato é uma certeza sobre a qual nenhuma outra coisa pode prevalecer. Portanto, sua contribuição será definitiva. Embora o senhor não misture crítica literária, duvido que, depois de seu estudo, um crítico possa ignorar os documentos fornecidos pelo senhor sobre os temas submetidos aos seus experimentos.
E dou-lhe esta autorização igualmente porque nunca escondi nada, não possuindo tal inclinação. Vivi intensamente, repito, intensamente, sem medo, e acreditei que fosse bom e útil dizê-lo. Dos muitos milhares de páginas que escrevi, não me arrependo de nenhuma. Enganam-se redondamente os que pensam que o meu passado me constrange, pois continuo a desejar aquilo que desejei, e os recursos permanecem praticamente os mesmos. Meu cérebro é feito um crânio de vidro, doei-o a todos e não temo que alguém o leia. E, quanto ao meu farrapo humano, uma vez que o senhor o julga útil para alguma coisa, como ensinamento e lição, tome-o então: é seu, é de todos. Se exibe algumas taras, parece-me não obstante suficientemente saudável e forte para não me envergonhar além da conta. Aliás, o que importa? Aceito a verdade.
Por fim, não é sem um maligno prazer que lhe dou tal autorização. Saiba que seu estudo combate vitoriosamente a lenda imbecil. Não deve ignorar que, trinta anos atrás, fizeram de mim um labrego, um boi de carga, de couro grosso, detentor de sentidos rudimentares, cumprindo pesadamente sua tarefa, com a finalidade única e desprezível do lucro. Santo Deus!, eu, que desprezo o dinheiro, que nunca caminhei na vida senão pelo ideal de minha juventude! Ah! O pé-rapado que fui, trêmulo e doente à menor corrente de ar, debruçando-se todas as manhãs sobre sua tarefa cotidiana na angústia, construindo sua obra em meio à luta da vontade contra a dúvida! Quantas vezes não ri e chorei desse proverbial boi de carga! E se hoje rio, é porque me parece que o senhor enterrou esse boi e as pessoas de boa-fé não tocarão mais no assunto.
Portanto, obrigado, meu caro doutor. Obrigado por ter estudado e etiquetado meu farrapo. Acredito piamente que ganhei com isso. Se ele não é perfeito, é o de um homem que doou sua vida ao trabalho e empenhou, para o trabalho e no trabalho, todas as suas forças físicas, intelectuais e morais.
Muito cordialmente,
Émile Zola
Paris, 13 de outubro de 1896