terça-feira, 10 de julho de 2012

Drummond, CANTO AO HOMEM DO POVO CHARLIE CHAPLIN (trechos)

(...)

Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece,
e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua,
e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,
só as mais humildes, de xingamento ou de beijo, te penetram.

Não a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,
eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade
                                                                                      comum,
nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno
                                                                                                   de ti
como um ramo de flores absurdas mandado por via postal
                                                           ao inventor dos jardins.


(...)


E a lua pousa
em teu rosto. Branco, de morte caiado,
que sepulcros evoca, mas que hastes
submarinas e álgidas e espelhos
e lírios que o tirano decepou, e faces
amortalhadas em farinha. O bigode
negro cresce em ti como um aviso
e logo interrompe. É negro, curto,
espesso. Ó rosto branco, de lunar matéria,
face cortada em lençol, rsico na parede,
caderno de infância, apenas imagem,
entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe,
sozinha, experiente, calada vem a boca
sorrir, aurora, para todos.

(...)


Cheio de sugestões limentícias, matas a fome
dos que não foram chamados à ceia celeste
ou industrial. Há ossos, há pudins
de gelatina e cereja e chocolate e nuvens
nas dobras de teu casaco. Estão guardados
para uma criança ou um cão. Pois bem conheces
a importância da comida, o gosto da carne,
o cheiro da sopa, a maciez amarela da batata,
e sabes a arte sutil de transformar em macarrão
o humilde cordão de teus sapatos.
Mais uma vez jantaste: a vida é boa.
Cabe um cigarro: e o tiras
da lata de sardinhas.

(...)


Ser tão sozinho em meio a tantos ombros,
andar aos mil num corpo só, franzino,
e ter braços enormes sobre as casas,
ter um pé em Guerrero e outro no Texas,
falar assim a chinês, a maranhense,
a russo, a negro: ser um só, de todos,
sem palavra, sem filtro,
sem opala:
há uma cidade em ti, que não sabemos.

(...)


Colo teus pedaços. Unidade
estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.
E nós, que a cada passo nos cobrimos
e nos despimos e nos mascaramos,
mal retemos em ti o mesmo homem,
               aprendiz
               bombeiro
               caixeiro
               doceiro
               emigrante
               forçado
               maquinista
               noivo
               patinador
               soldado
               músico
               peregrino
               artista de circo
               marquês
               marinheiro
               carregador de piano
apenas sempre entretanto tu mesmo,
o que não está de acordo e é meigo,
o incapaz de propriedade, o pé
errante, a estrada
fugindo, o amigo
que desejaríamos reter
na chuva, no espelho, na memória
e todavia perdemos.

(...)





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