Se hoje o governo da
presidente Dilma Rousseff segura preços de combustíveis e energia
elétrica, ao mesmo tempo em que manifestações populares levaram a um
adiamento, por estados e prefeituras, do reajuste dos transportes
públicos, o regime militar manipulou a coleta de informações nos índices
oficiais de inflação, para mantê-los artificialmente baixos.
Especialistas lembram
ainda que a atual política industrial, que exige de fornecedores da
Petrobras a produção com conteúdo local e leva o BNDES a escolher
“campeãs nacionais”, guarda inspiração no primeiro e no segundo Plano
Nacional de Desenvolvimento (PND, dos governos Médici e Geisel). Não por
acaso, a política industrial de Dilma ganhou o nome de Brasil Maior — o
lema, no regime militar, era o Brasil Grande.
Na ditadura, arrocho. Hoje, renda sobe
Um dos formuladores do
Plano Real, o economista Edmar Bacha compara o controle de preços no
governo Dilma à política adotada pelo governo militar com o Conselho
Interministerial de Preços (CIP) nos anos 1970. Ele cita o aumento de
apenas 1,5% dos preços administrados em 2013, enquanto a inflação dos
preços livres foi de 7,5% no ano passado.
— Estamos vendo o inflacionismo de volta, um inflacionismo muito
perverso, do tipo do Delfim (Netto), quando a inflação estava em 20%.
Ele institui os controles, de forma muito inteligente. Delfim tinha não
somente a lista dos produtos, mas a dos locais onde os coletadores iam
buscar os preços (para medir a inflação). Para estes produtos e para
estes locais, você controlava os preços com o CIP (garantindo o
abastecimento no local). Não é que os índices estivessem sendo
falsificados. E agora temos uma réplica muito torta deste mesmo processo
de controle de preços de energia, de petróleo, dos ônibus — afirma o
diretor do Instituto de Estudos em Política Econômica da Casa das
Garças.
No caso da inflação, a ditadura contou, porém, com outro mecanismo
para conter os preços, que, em 1964, subiram 92%: o arrocho salarial.
Hoje, por outro lado, os brasileiros desfrutam de nove anos seguidos de
ganhos de renda.
A fórmula de reajuste dos salários criada pelo então ministro da
Fazenda Mario Henrique Simonsen no primeiro governo militar de Castelo
Branco provocou perdas. Os trabalhadores da indústria viram a renda cair
até 15%, entre 1965 e 1967. Embutia-se a metade da inflação prevista
sobre o salário médio dos últimos 24 meses mais a taxa de produtividade.
Mas as previsões de inflação do governo sempre foram subestimadas,
lembra o decano da PUC-Rio Luiz Roberto Cunha, que foi secretário
adjunto do CIP entre 1976 a 1979:
— Você achatou salários, o que acabou sendo um elemento importante
para derrubar a inflação, mas a inflação não caiu tanto quanto se
esperava, pois já tinha correção monetária (criada em 1964).
Concentrar para crescer
A economista Maria da Conceição Tavares, que travou seguidas
discussões com seu amigo Simonsen, vê apenas na energia semelhanças
entre a tentativa de controlar a inflação no regime militar e o cenário
atual:
— Semelhanças hoje são basicamente a energia. Sempre é a energia,
que é muito difundida na economia. Só que no regime militar houve o
congelamento dos salários; hoje não fazemos isso. Sempre se tenta dar
uma segurada nos custos básicos. Salário e energia são os insumos mais
pesados.
A política industrial de hoje também traz semelhanças com o período
militar. Mas, segundo o economista Claudio Frischtak, da InterB.
Consultoria, se os PNDs tinham visão estratégica, o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) é um “amontoado de obras”. Francisco
Eduardo Pires de Souza, da UFRJ e do BNDES, diz que falta foco à
política industrial atual.
Para Bacha, a política industrial do governo Dilma repete
diretrizes do PND, porém de forma ainda mais intervencionista. Em vez
das cotas de importações daquela época, está em vigor hoje a exigência
de conteúdo local.
— Um industrial que produza uma tomada de três pontos tem que
negociar um a um com algum tecnocrata do Ministério de Indústria e
Comércio, especificando o conteúdo dos pinos, a natureza dos plásticos e
quanto cada um desses itens tem de conteúdo nacional. É uma maluquice.
Nem o Geisel ousou fazer esse microgerenciamento que a gente tem hoje.
Para ele, o PAC é uma tentativa de repetir o PND, embora não esteja conseguindo gerar o volume de investimentos daquela época.
Cunha afirma que “a busca do crescimento a toda força, no caso dos
militares para justificar sua intervenção e a ditadura, é uma das
heranças nefastas do ponto de vista econômico”:
— A grande herança negativa é essa. Ter tirado do setor privado a
sua capacidade de autonomia, criado uma dependência muito grande — diz o
decano da PUC.
Segundo Cunha, davam-se incentivos para exportação, agricultura, pesca, reflorestamento:
— Qualquer coisa tinha incentivo. A história do reflorestamento era
muito interessante. Você tinha um incentivo para o reflorestamento,
podia plantar pinheiro para fazer papel. Teve um sujeito na época que
derrubou toda a Mata Atlântica na região de Correias, em Petrópolis, e
plantou uma floresta de pinheiros. Mudou toda a ecologia da região, com
custo zero, pago com incentivo fiscal.
Cunha afirma que a estratégia econômica do regime militar era
concentrar para crescer. Criou-se uma comissão de fusão e incorporação,
inspirada na ideia do modelo japonês:
— Dava-se incentivo para concentrar. Ter empresas grandes para poder crescer. Um horror — diz o professor da PUC.
Essa estratégia foi adotada nas telecomunicações, lembra o
professor do Instituto de Economia da UFRJ Fábio Sá Earp. As 930
empresas privadas foram reduzidas a 33, para dar eficiência:
— Os militares não tinham o
menor sentido da revolução que eles estavam fazendo. Eles tinham
preocupação com duas coisas: ligação interurbana do Rio para Brasília
demorava muito para acontecer, e em diversas áreas da Amazônia não
chegava o sinal da Rádio Nacional, mas chegava o da rádio de Havana
(Cuba). Eles não tinham a menor dimensão do impacto cultural que a
televisão em escala nacional iria trazer para o Brasil. Eles queriam
resolver esses dois problemas bem localizadinhos e acabaram montando uma
infraestrutura que mudou culturalmente o país.
Inflação reprimida
No caso da inflação, o
economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Carlos
Thadeu de Freitas, ex-diretor do Banco Central (BC), lembra que o
descontrole de preços já era um problema antes do golpe. E, para isso, o
regime militar recorreu aos artifícios para segurar os preços. Afinal, a
alta da inflação inibia os investimentos. Segundo ele, no primeiro
trimestre de 1964, a inflação chegou a 25%, o equivalente a 150% anuais.
O recente pacote de
medidas do governo para socorrer o setor elétrico, segundo Bacha, traz
uma pressão adicional para a inflação futura:
— Agora mesmo, com esse
socorro ao setor elétrico, acumulamos mais uma boa dose de inflação
reprimida dos preços de energia, que terá que ser explicitada. E tem uma
inflação reprimida que está quebrando o setor energético, está
quebrando a Petrobras.
O secretário Nacional de Economia Solidária, o austríaco Paul Singer, não se mostra preocupado com a inflação:
— Estamos com o menor
nível de inflação que já vivi desde que cheguei ao Brasil, nos anos
1940. Uma inflação de 6% ao ano é ridícula perto do que já vivemos. Colaborou Luciana Rodrigues