Heine talvez continue a desafiar nossos parâmetros, provocando desconfiança e rejeição, porque não se encaixa no modelo binário que seu admirador Nietzche propagou -- ele não é apolíneo nem dionisíaco. Pertence a uma terceira categoria que o Ocidente relegou às sombras. Havelock Ellis acertou em cheio quando chamou o poeta judeu-alemão de "Hermes travesso".
O culto dessa que é uma das mais primordiais e complexas divindades da Antiguidade estaria ligado aos rituais de fecundação, de onde adveio sua associação ao intercurso, à criatividade e à intervenção. Não por acaso, Hermes era o protetor dos poetas e pensadores, dos diplomatas e tradutores, como dos comerciantes e ladrões. Era o Arauto de Zeus, o Senhor dos caminhos, o Transgressor das fronteiras. A ele foram atribuídas tanto a criação da lira -- brinquedo com o qual aplacou a ira de Apolo -- como da escrita.
Na Idade Média, ele foi defenestrado. mas continuou ativo -- rebaixado como jogral, na corte -- ou temido como o "Tinhoso", nas encruzilhadas. O jokerman -- "You are a man of the mountains, you can walk on the clouds, Manipulator of crowds, you are a dream twister" -- como haveria de cantar mais tarde um outro judeu errante e fugidio -- Robert Zimmerman, por alcunha Bob Dylan --, quem sabe o avatar mais próximo e recente de Harry Heine. (Ou seria o genial quadrinista Art Spiegelman?).
Heine foi o primeiro poeta verdadeiramente midiático do século XIX, o primeiro a se apropriar com estratégia das redes de influência, das engrenagens do jornalismo e dos melindres do mercado editorial, sem jamais trair, no entanto, seu projeto iluminista de "libertação da humanidade". Foi o mais autêntico -- se não o único -- utópico esclarecido de seu tempo.
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