É a primeira vez que a deixo sem que você esteja aqui. Não ouvirei mais sua voz cicatrizada há tantos anos, cobrindo mal sua ferida de há mais anos ainda, a voz quando eu telefonava de longe e para você tudo estava terminado para sempre por alguns dias, que dizia a injustiça e o abandono contra qualquer verossimilhança, já que poucos dias depois retomava seu curso a outra injustiça, a cotidiana, sua voz sem razões, e você tinha razão tantos anos antes já que no final seria abandonada, você sabia disso, sua voz asfixiada pela ausência e pela insensata separação, seu ser secado pela súbita, evidente, fulminante fatalidade, a falta de ser, a falha do que tinha sido prometido, a falta de estar juntos, a cruel falha infligida, a inflexão vitimária, seu ser einfectado de provas.
e no lugar do uníssono a recíproca, a instantânea, a brutal ferida pelo telefone, como num ataque de esgrimistas vulneráveis, tocados, tocados ao mesmo tempo pela ponta cega do outro pela milésima vez "oh furor dos corações maduros pelo amor ulcerados"
é a primeira vez que a deixo sem que você esteja aqui para sofrer, e em vez de receber pelo menos um abrandamento da pena, de pelo menos não fazer mais você sofrer, é meu abandono, o que eu desejava, citando o amor taciturno e sempre ameaçado, que torce a esponja do ventre e me muda em carpidor, como se a viagem agravada tantos anos por essas más condições, esse contágio de erros recíprocos, tivesse encontrado aí seu regime de melancolia, sua tonalidade de fracasso inevitável, do qual alimentar-se e à sua interrupção ceder sem lamentos.
Acordo na lagoa equatorial, bem antes da aurora deles, como de costume, e é para o aniversário e seu alarme, há um mês minha mulher morria, não posso dizer você morria, com um você enlouquecedor, sem destinatário, e digo mesmo "morria", não perecia ou lia ou viajava ou dormia ou ria, mas "morria", como se fosse um verbo, como se houvesse um sujeito para esse verbo entre outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário