terça-feira, 23 de novembro de 2010

MANOEL DE BARROS, em Memórias Inventadas (3)

"Pintura

Sempre compreendo o que faço depois que já fiz. O que sempre faço nem seja uma aplicação de estudos. É sempre uma descoberta. Não é nada procurado. É achado mesmo. Como se andasse num brejo e desse no sapo. Acho que é defeito de nascença isso. Igual como a gente nascesse de quatro olhares ou de quatro orelhas. Um dia tentei desenhar as formas da Manhã sem lápis. Já pensou? Por primeiro havia que humanizar a Manhã. Torná-la biológica. Fazê-la mulher. Antesmente eu tentara coisificar as pessoas e humanizar as coisas. Porém humanizar o tempo! Uma parte do tempo? Era dose. Entretanto eu tentei. Pintei sem lápis a Manhã de pernas abertas para o Sol. A Manhã era mulher e estava de pernas abertas para o sol. Na ocasião eu aprendera em Vieira (Padre Antônio, 1604, Lisboa) eu aprendera que as imagens pintadas com palavras eram para se ver de ouvir. Então seria o caso de se ouvir a frase para se enxergar a Manhã de pernas abertas? Estava humanizada essa beleza de tempo. E com seus passarinhos, e as águas e o Sol a fecundar o trecho. Arrisquei fazer isso com a Manhã, na cega. Depois que meu avô me ensinou que eu pintara a imagem erótica da Manhã. Isso fora.".

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