Jazz supremo
Livro de Ashley
Kahn resgata a
trajetória da
gravação de "A
Love Supreme",
álbum-marco de
John Coltrane
Burt Goldblatt e Katherine Hollman Goldblatt/Divulgação
|
O produtor de jazz Bob Thiele (ao fundo) e o músico John Coltrane em registro do começo dos anos 60 |
BRUNA BITTENCOURT
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Durante cinco dias no fim de
1964, John Coltrane se isolou
com seu saxofone no sobrado
que havia acabado de comprar
em Nova York. Quando reapareceu, sua esposa notou que ele
estava especialmente sereno.
"Esta é a primeira vez em que
me veio toda a música que quero gravar. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto", disse.
No mesmo ano, Coltrane gravava "A Love Supreme", uma
suíte-marco da história do jazz,
e, em suas palavras, "uma oferenda a Ele".
A passagem acima é um dos
relatos de "A Love Supreme - A
Criação do Álbum Clássico de
John Coltrane", de Ashley
Kahn. O autor norte-americano recupera todo o trajeto que
Coltrane percorreu até a gravação do disco, em um retrato humano do jazzista, além de um
panorama do gênero nas décadas de 50 e 60.
Kahn já havia se debruçado
sobre os bastidores da gravação
de outro importante álbum do
jazz, em "Kind of Blue - A História da Obra-Prima de Miles
Davis" (ed. Barracuda). Ex-editor de música do canal VH1,
professor da Universidade de
Nova York, onde leciona uma
matéria sobre Davis, Kahn conversou com a
Folha por telefone. Leia trechos da entrevista.
FOLHA - Coltrane era extremamente dedicado a sua música. Depois de
tantos anos praticando incessantemente, você acha que sua disciplina
ultrapassou seu talento natural?
ASHLEY KAHN - Acho que ultrapassar não é o termo correto,
mas potencializar. Ele trabalhou muito duro para levar seu
saxofone ao nível que ele queria
que sua música alcançasse. Era
por isso que praticava e estudava teoria e harmonia da música
sozinho, mesmo depois de deixar a escola de música -e muitos artistas param de estudar
depois de atingir um certo nível. Ele não era um prodígio;
Miles Davis também não. Os
dois chegaram à sua sonoridade com sua carreira avançada.
As pessoas não falaram de Coltrane ser um líder de sua música antes de ele ter 32, 33 anos.
Não acho que ninguém tenha
trabalhado tão duro quanto ele.
FOLHA - O que mais lhe surpreendeu durante a processo de pesquisa
de "A Love Supreme"?
KAHN - Coltrane era muito
atento e atuante no lado prático
de sua carreira, do "business".
Ele lidava com contratos, por
exemplo; não era aquele santo
que não podia tocar no dinheiro. Era bem esperto e consciente sobre o que estava fazendo
com sua carreira.
FOLHA - A década de 60 foi a das religiões, de uma nova
espiritualidade, material para Coltrone compor "A Love Supreme". Você
acha que o
disco teria a mesma aceitação se
fosse lançado nos dias de hoje?
KAHN - Provavelmente não.
Também não acho que o disco
teria a mesma forma. "A Love
Supreme" veio na hora certa. A
espiritualidade dos anos 60 começou em 1965, 1966, o que
coincide com o período do disco. Obviamente, não foi a única
razão pela qual as pessoas se
tornaram espirituais - veja os
Beatles. Mas a espiritualidade
da banda parecia indefinida e
barata comparada à enorme
dedicação de alguém como
John Coltrane.
FOLHA - Como você escreveu, é difícil falar sobre Coltrane sem parecer
exagerado. Como lidou com isso?
KAHN - Foi difícil. A verdade é
que Coltrane era mesmo um
indivíduo incrível. Era um herói espiritualmente e musicalmente. Don Cherry, que tocou
com Ornette Coleman, conta
sobre a atenção que ele tinha
em viver bem, o que o tornou
um músico melhor. Dia a dia,
ele se preocupava em ganhar
dinheiro, em montar sua banda. Isso é o que tentei fazer:
mostrar o grande homem por
trás da música.
FOLHA- Alguns críticos acham que
Coltrane foi a última grande inovação do jazz. Você concorda?
KAHN - Ele foi uma das últimas
grandes influências. Há sempre
coisas novas acontecendo no
jazz, mas nada importante o suficiente para a cena se mover
em outra direção. Se você quiser mesmo medir onde o jazz
está hoje, terá que ir além dele
para achar onde estão seus limites -a palavra "jazz" não
abriga todas essas experimentações e fusões com outros estilos. E se você pensar no jazz
deste jeito, ele progrediu de
muitas maneiras desde a morte
de Coltrane. Isso foi tão importante quanto ele? Não. Músicos
como Coltrane não surgem
com freqüência.
FOLHA - Depois de escrever "Kind
of Blue" e a "Love Supreme", como
você compara Coltrane e Davis? O
que eles representam para o jazz,
assim como esses dois discos?
KAHN - Ambos representam o
início do mais influente período da improvisação moderna -
não me refiro somente ao jazz,
porque suas influências vão
além do gênero. Eles traduziram e evoluíram o som de
Charlie Parker e Dizzy Gillespie -o verdadeiro começo do
jazz moderno. E ainda estamos
lidando com suas descobertas.
Não acho que se possa dizer
que estes sejam seus álbuns representativos, já que suas trajetórias compreendem muitas
mudanças de estilo. Mas são álbuns que representam o retrato da música deles, a emoção de
suas personalidades: a serenidade de "Kind of Blue" é Miles
Davis, assim como a passionalidade e espiritualidade de "A
Love Supreme" é Coltrane.
FOLHA - Seus três livros sobre jazz
focam a mesma época, as décadas
de 60 e 70. Você acha que este foi o
período mais fértil do gênero?
KAHN - Nos anos 60, diferentes
estilos de jazz estavam acontecendo ao mesmo tempo, nos
mesmos clubes e festivais. Havia Louis Armstrong, Duke
Ellington, Count Basie, Dizzy
Gillespie e muitos outros nomes do bebop. Havia ainda
gente nova, como Davis e Coltrane, começando a acontecer;
Ornette Coleman e o avant-garde. Foi um período muito
especial para o jazz.
FOLHA - Seu livro é acessível mesmo para quem não é familiarizado
com o jazz. Você acha que o gênero
é tratado com uma erudição desnecessária?
KAHN - Claro. Esse foi meu objetivo. Muito da literatura do
jazz é feita para pessoas que já
conhecem aquilo. Jazz é música que entra pelos ouvidos e vai
para o coração -e é só o que você precisa para ouvi-lo. Muitos
alunos me dizem que até gostam de jazz, mas que não sabem
muito a respeito. O conhecimento, porém, não é necessário
para ouvir.