Tinha para mim isso como verdade. Nunca escreveria um conto. Até hoje não sei sua diferença para crônica. Como iria escrever? Mas...queria contar um pouco da vida de dois velhinhos que conheci não faz muito tempo. Quando começamos a tratar, ambos já estavam com mais de setenta. Na verdade, um com setenta e um e o outro com oitenta. Anos de amizade proporcionaram uma intimidade que era reconhecida pelas homéricas brigas. De copo d'água à hora do almoço, do ônibus errado ao troco do cafezinho. Brigavam por tudo, mas quando o mais moço morreu o mais velho me contou o que irei transcrever agora. Parte de uma história de amizade bonita toda vida.
"Voem me olhou emocionado e passou a falar, sem parar, durante uma hora e meia, só fez falar e chorar.
”Sinto saudade de um, dois, feijão com arroz, três, quatro, feijão no prato, cinco seis, feijão outra vez, sete, oito, quero biscoito, nove e dez, começa outra vez.
Sinto saudade do tempo em que meu pai me obrigava a esperá-lo voltar do trabalho para recitar poesias que ele tinha feito com a barriga no balcão da farmácia.
Sinto saudade da Mariazinha do bole-bole, peitinho duro, boceta mole, o galo canta meu pau levanta a vaca berra meu pau enterra.
Sinto saudade do cheiro do arroz que minha mãe fazia. Comia, comia, comia sem parar, era de chorar!
Sinto saudade do pirulito que bate, bate, pirulito que já bateu quem gosta de mim é ela, quem gosta dela sou eu.
Sinto saudade dos amigos que já se foram, das peladas na praia, do basquete no clube, das caçadas de passarinhos, coitados prendíamos os bichinhos e ficávamos bobamente alegres.
Sinto saudade de eu vi uma barata na careca do vovô, assim que ele me viu bateu asas e voou, Do,ré,mi,fá,fá,fá do,ré,do,ré,ré,ré do,sol,fá,mi,mi,m,i do,ré,mi,fá,fá,fá.
Sinto saudade de primeiro time é meu segundo time é teu, Andaraí no seu gramado, bola pro mato que o jogo é de campeonato.
Sinto saudade das noites de seresta em que ouvia minha mãe cantar várias músicas da Maria Creusa.
Sinto saudade de escravos de jó, jogavam caxangá, tira, bota, deixa ficar, guerreiros com guerreiros fazem zig, zig, zá..
Sinto saudade da calçada da praia das Flechas.
Sinto saudade do Huguinho, do Zezinho e do Luisinho.
Sinto saudade de Fé, Tête, café, fedo, Fred, Fernandes.
Sinto saudade da canoa virou, por deixar ela virar, foi por causa do Zezinho, que não soube remar...
Sinto saudade da gangue, do Gaguinho, do Bruninho, do Cláudio, do Osvaldo e da Betina.
Sinto saudade do Pai Francisco entrou na roda, tocando seu violão, paradão, dão, dão. E vem cá seu delegado e pai Francisco foi para a prisão Como ele vem todo requebrado, parece um boneco desengonçado.
Sinto saudade do coração de Boceta, do capitão Buraco, do Burackson Five.
Sinto saudade do sapo não lava o pé, não lava porque não quer, ele mora na lagoa, não lava o pé, porque não quer.
Sinto saudade do Ratonildo; do Dudu, Piru e do Carlinhos.
Sinto saudade do meu pintinho amarelinho, cabe aqui na minha mão, na minha mão. Quando quer comer bichinho, com seu pezinho cisca no chão. Ele bate as asas, ele faz piu, piu, mas tem muito medo do gavião.
Sinto saudade de jogar bola e sair na porrada.
Sinto saudade das meninas de saia.
Sinto saudade de torce, retorce, procuro mas não vejo, não sei se era pulga ou se era um percevejo. A pulga e o percevejo fizeram uma combinação, fizeram uma serenata, bem debaixo do meu colchão.
Sinto saudade do cravo brigou com a rosa, debaixo de uma sacada, o cravo saiu ferido e a rosa despetalada. O cravo ficou doente e a rosa foi visitar. O cravo teve um desmaio e a rosa pôs-se a chorar.
Sinto falta de atirei o pau no gato-to, mas o gato-to não morreu-rreu, Dona Chica-ca admirou-se-se do berro, do berro, que o gato deu. Miau!
Sinto saudade da pouca idade, da intensidade que a ingenuidade permite, ver em olhos de piques a vida pulsando a vida me chamando e eu sem medo gritando amá-la.
Sinto saudade de como pode o peixe vivo viver fora da água fria? Como poderei viver? Sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia?
Sinto saudade do meu filho e da minha nora que me deixaram num momento delicado, me deixaram com dois anjos para cuidar.
Sinto saudade da inteira coragem que tive que ter para cuidar da Bela e do Rique.
Sinto saudade do alambique do meu vô, que em vão tentou me dar um pouco da branquinha que eu recusei por não saber como dói uma recordação.
Sinto saudade de ir ao Maracá com meu tio.
Sinto saudade do cai, cai, balão, cai cai, balão, aqui na minha mão. Não vou lá, não vou lá, não vou lá, tenho medo de apanhar.
Sinto saudade de tomar banho na banheira da casa de minha vó Diva, para os íntimos, ou gordinha, para meu pai, ou Divanaghy, para todos.
Sinto saudade da minha outra avó Arlete, que era apaixonada por mim e por gim, uísque e outros destilados, a velha era animada e brincava comigo de tocar instrumentos nas minhas costelas.
Sinto saudade de marcha soldado, cabeça de papel, quem não marchar direito, vai preso pro quartel. O quartel pegou fogo, Francisco deu sinal, acode, acode, acode, a bandeira nacional.
Sinto saudade do som das panelas na casa da minha tia Ana, todo ano íamos para São Pedro da Aldeia, e faziámos a maior bagunça.
Sinto saudade do salgueiro entrando na avenida, com meu tio Quincas.
Sinto saudade do mundo, do quadro de Drummond, do menino-passarinho Quintana, do sacana do Vinícius.
Sinto saudade do alecrim, alecrim dourado, que nasceu no campo sem ser semeado. Foi meu amor, quem me disse assim, que a flor do campo, é o alecrim.
Sinto saudade de tudo o que poderia ter escrito mas fiquei com preguiça, medo, sei lá.
Sinto saudade da voz do poeta Tiago de Melo.
Sinto saudade do cello de Jaquinho.
Sinto saudade do poema que meu irmão leu em homenagem ao meu pai e que agora não me recordo...Perái, lembrei:
um poeta não precisa escrever ter a capacidade de antever sofrer de amor escorrer lágrimas por amizade parecer desatento mas cuidar de longe, alisar os cabelos do pai mesmo que por palavras não ditas, não escritas um eu te amo num simples:”oi, pai!”
Sinto saudade do Ginho.
Sinto do menino que fui!”.
Aí, emocionado, falei. Eu também sinto saudade, sinto saudade tanta coisa...principalmente da casa que foi meu abrigo, da casa onde vivi com minha família e que o vício me tirou.
Essas sombras que invadem minha sala...São flexões do meu corpo? Ou ações da luz que incide contra mim...Um rastro de tão pouco...
Vendo um jardim da sacada (nada me escapa): as abelhas,
as moscas, os mosquitos se divertem com um carrossel colorido de cheiros e ilusões...
Uma flor sendo cortejada pelo beija-flor que a trata vendo alimento e amor, vendo carinho e a dor de perdê-la, no primeiro bater de asas...
Sob o sol, carências serão reveladas, as árvores da inveja desprenderão folhas e sementes de discórdia, de desatenção...
Depressão por saudade, por vontade de fazer algo, sem ter coragem
Só nos resta arrancá-las, produzindo clarão na nossa floresta de desilusão.
Dentro de mim tenho a vida, os rios, as montanhas, a ferida,
o óbito, a felicidade, os óculos, a mentira, a flor, o maluco...Não me importo com o antes ou com o que virá...Me vejo com tempo para aproveitar. Dentro de mim tenho o mundo a girar, sou cachorro latindo,
menino pedindo, mãe chorando de felicidade, velho namorando a feliz idade, sou o bobo, freirinha namorando o Senhor, acelero a dor da descoberta, sou bombeiro, sou novela, Saavedra de aventuras, sou fartura, sou cisterna cheia, que é vida ou morte, Severina sem sorte
de conhecer seu Romeu, Julieta sem julho, agosto sem outubro,
Sou seu tudo e nada também, setembro sem vintém...enfim...
Tudo está aqui, dentro de mim!
Se eu fosse poeta esqueceria as regras e me prenderia aos sentimentos. Enrolaria breves momentos ao tecido fino da memória
e nunca mais me esqueceria de mim...
...ser poeta...Ser poeta é enxergar poesia na vida. É antecipar o canto do pássaro, inventar o nascimento do pássaro que ainda não cantou, é transformar o canto do pássaro no canto das coisas que ainda estão por acontecer. Ser poeta é voar para viver, viver inventando o sofrer, reinventando-se para tecer com fios de ouro o imaginário do leitor, ajudá-lo a pisar num chão de estrelas caindo, subindo, fingindo não ligar, para tocar o céu com as mãos. Ser poeta é ser deus numa fração, transcender às primeiras intenções. Sou(l) poesia?
Caralho, Noel! Você é um puta poeta!, disse Voem emocionadíssimo!".
Se isso é um conto não sei, mas contei!
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