Fuga
Saíram de madrugada, com a fresca, andaram bastante
Quatro sombras Os meninos à frente Sinha Vitória sob o baú de folha pintada e a cabaça de água Fabiano atrás pensando em coisas alheias: o chiqueiro e o curral, o cavalo de fábrica, a égua alazã, as catingueiras, as panelas de losna, as pedras da cozinha, a cama de varas
Acabou-se, pensou Fabiano A lembrança de Baleia aperreava-o, precisava fugir daquela vegetação inimiga Remexeu os beiços em oração Deus Nosso senhor protegeria os inocentes Sinha Vitória fraquejou Reanimou-se, tentou livrar-se dos pensamentos tristes e conversar com o marido por monossílabos
Ela precisava falar, se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo Chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se, esqueceu de tudo, falou do passado, confundiu-o com o futuro Não poderiam voltar a ser o que já tinham sido?
Fabiano hesitou, resmungou, como fazia sempre que lhe dirigiam palavras incompreensíveis Cochicharam uma conversa O vaqueiro assombrava-se com a ideia que se dirigia a terras onde talvez não houvesse gado para tratar
Encarquilhou as pálpebras contendo as lágrimas, uma grande saudade espremeu-lhe o coração, um instante depois vieram figuras insuportáveis: o patrão, o soldado amarelo, a cachorra Baleia inteiriçada junto às pedras do fim do pátio
Dobrando o cotovelo da estrada, sentiu-se distante disso essas lembranças esmoreceram seu espírito
A conversa recomeçou Agora ele estava mais otimista
Endireitou o saco da comida, examinou o rosto carnudo e as pernas grossas da mulher
Continuou a tagarelar para afugentar uma nuvem que, vista de perto, escondia o patrão, o soldado amarelo e a cachorra Baleia
Talvez o lugar para onde iriam fosse melhor, disse sinha Vitória e combateu a dúvida de Fabiano insistindo Dominou-o Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias Podiam viver escondidos como bichos?
Fabiano respondeu que não podiam
Ela, ao contrário dele, tinha certeza que os filhos chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde havia montes baixos, cascalho, rios secos, espinho, urubus, bichos morrendo, gente morrendo
Então eles eram bois para morrer tristes por falta de espinhos?
De repente veio a fraqueza, devia ser fome
Foram descansar sob os garranchos de uma quixabeira, mastigaram punhados de farinha e pedaços de carne, beberam na cuia uns goles d’água
Se achassem água ali por perto, beberiam muito, sairiam cheios, arrastando os pés
Fabiano inventava o bebedouro, descrevia-o, excitava-se, transmitia esperança
As palavras de sinha Vitória encantavam-no
Iriam para diante
Alcançariam uma terra desconhecida
Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era
Repetia docilmente as palavras de sinha Vitória, as palavras que sinha Vitória murmurava porque tinha confiança nele...
Fim.