domingo, 31 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 31 de janeiro de 2016 -- O POETA E OS CRÍTICOS

O POETA E OS CRÍTICOS -- Lêdo Ivo


Poeta da noite e do sonho
que ousa interrogar Deus
sem nem mesmo conhecê-lo
direito por linhas tortas,
assim foi estampilhado
por um crítico sagaz.
Mas um outro proclamou:
És poeta da claridade
e o sol que trazes perturba
os meus olhos fatigados.
Um terceiro o definiu
como o poeta do amor
e do corpo feminino
que freme na escuridão
como rosa atravessada.
Um resenhista apressado
o limitou aos navios
que ele viu quando menino
no azulverde mar azul
da península natal.
À luz do estruturalismo
um professor garantiu:
sei ler a tua linguagem.
Teus peixes e caranguejos
são metáforas falazes.
Não me engana o teu império
de maceiós e alagoas
nem a luz do teu farol.
Não me ilude o goiamum
que sorrateiro atravessa
a água negra dos teus mangues.
Digo, mesmo que te zangues,
que a morte é tua matéria.
Um poema de tua lavra
É chave de cemitério.
E aquele crítico atento
às suas portas fechadas
e às suas folhas caídas
chamou-lhe poeta do tempo
e das ilusões perdidas
e invocava como prova
a fria cinza nascida
de uma fogueira no bosque.
Um crítico o festejava
pelos seus versos lacônicos
enquanto outro o censurava
pelo seu ritmo oceânico.
Pela noite rodeado
ou sob o sol caminhando
o ledo poeta aturdido
por tantas doutas versões
perguntava aos seus botões
ou indagava às estrelas
que brilham mesmo ao céu claro
só para quem sabe vê-las:
O que digo quando digo?
Por quem falo quando falo?
Já que os críticos divergem
no tamanho do meu metro
sou parco ou sou excessivo
quando entôo minha canção?
Onde começo e termino?
Quem sou? Quem fui? Quem serei?
Porque sou um e sou vários,
ora vivo dividido,
ora morto esquartejado?
Eu sou eu ou sou o outro,
esse guerreiro ardiloso
que, oculto em mim, me combate
na batalha desigual?
Tantas perguntas, e o dia
como uma nuvem passava!
Só o vento lhe respondia
No silêncio do céu mudo:
--- És como eu sou. Nada sei.

Sopro noite e dia. E é tudo.

sábado, 30 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 30 de janeiro de 2016 -- A GUERRA

A GUERRA -- Lêdo Ivo


De tanto guerrear comigo mesmo
já não sei a que exército pertenço.
Não sei a quem derroto nem se venço
quando venço e derroto, e me levanto

no sujo e irado chão ensombrecido
que recebe o meu grito de vitória
e o devolve cativo de um lamento
que vence o vento, e a mim me faz vencido.

Quem me derrota quando venço? Quem
me vence quando venço, e faz a guerra
em que guerreio a minha rendição?

Sou meu próprio inimigo e perdição.
Um clarim toca em mim na paz da terra
E a derrota é vitória, e a paz é guerra.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 29 de janeiro de 2016 -- NEW HAVEN


 NEW HAVEN -- Lêdo Ivo

É a vida tramoia e desconcerto
antes de ser a morte o vento vivo,
o pertinaz desastre sucessivo
que passa sobre as árvores e os seres.

E fica nua a terra antes vestida
de sua própria folha e aparência,
e o andar na solidão por entre gentes
à gerência do vento se confia.

A pintura florida empalidece,
o mar impaciente se aquieta
e os lábios imprestáveis se descoram.

E o vento é vento e morte na morada
da lágrima rendida, e a sombra aflora

e, sendo sombra, é flor, semente e pó.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 28 de janeiro de 2016 -- O GIRASSOL


O GIRASSOL  Lêdo Ivo

Em minha mão fechada cabe o dia,
o fogo aleatório dos instantes
e o silêncio que espalham os amantes
quando termina a festa e nada resta

da luz petrificada entre as montanhas.
Em minha mão aberta cabe a sombra
largada pela vida que me espera
além do inverno, quando a primavera

devolve ao caule a rosa fenecida
e o que foi volta a ser, e toda perda
retorna como um lucro imerecido.

A minha mão sustenta um girassol.
Sou a sobra e o excesso, como o vento
ou como a luz incômoda do sol.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 27 de janeiro de 2016 -- SONETO DO AMANHECER

SONETO DO AMANHECER -- Lêdo Ivo

O dia
sem mancha
que tisne
sua alvura

de cisne
Imaculado
Muro branco
Branco

de luz
e cal
na pura

brancura
da manhã
de sal

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 26 de janeiro de 2016 -- PROMONTÓRIO


PROMONTÓRIO -- Lêdo Ivo

Sempre busquei a profusão das chuvas
e celebrei o excesso.

A porta que se abre à claridade do relâmpago
divide o dia em partes desiguais.
Mas entre a luz e a sombra há um espaço
onde o sonho e a vida acordada se juntam como dois corpos
separados das almas desunidas.
É a este lugar que retorno
quando  a chuva cai em Maceió e derruba as folhas
dos cajueiros floridos.
Os goiamuns inquietos percebem nas locas a alteração do mundo
que oscila entre a alma e as raízes dos mangues
como duas cores de arco-íris.

Berço das tanajuras, pátria ameaçada pelo trovão,
dunas sonâmbulas que só caminham à noite,
mar que umedece os lábios rachados da areia,
longe de vós serei um exilado.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 25 de janeiro de 2016 -- ANOITECER EM MACEIÓ

ANOITECER EM MACEIÓ -- Lêdo Ivo

A noite cai: o pálido semáforo
resiste à sombra que rodeia a terra.
O mar desaparece no naufrágio
do dia triunfante e dos navios.
E de tudo o que foi vida e clamor
e dor dos homens, e gesto de amor
para sempre perdido, resta apenas
e languidez do céu crepuscular.

domingo, 24 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 24 de janeiro de 2016 -- A CREPITAÇÃO

A CREPITAÇÃO -- Lêdo Ivo

Qualquer vida é naufrágio e perdimento.
Quando chegamos ao fim da restinga
encontramos apenas mar e vento.

Onde estão nossos sonhos? Um errante
raio de sol sumiu entre a folhagem,
dentro de nós o dia fez-se pálido.

Cercado pela luz da madrugada
e de mim rodeado, estou sozinho
entre as grutas da terra e a ira do mar.

sábado, 23 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 23 de janeiro de 2016 -- COBRA CORAL


COBRA CORAL  Lêdo Ivo

O dia abre a sua porta luminosa. E as formigas passam.
E os homens passam. E as aranhas tecem constelações.
No alto da duna o goiamum espreita o horizonte.
O rato no monte de lenha conhece o caminho
que o conduz ao trapiche abarrotado.
Na cidade peninsular azul e branca
o dia é uma cobra coral
sob o sol imóvel.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 22 de janeiro de 2016 -- O QUE EU DISSE À CRACA

O QUE EU DISSE À CRACA -- Lêdo Ivo

Eu disse à craca da Ponte Rio-Niterói:
O tempo é um molusco que se incrusta
na obra dos homens
e com a tua faina imperceptível explicas eu ter esquecido um nome
após tê-lo soletrado dia e noite no delta de um púbis.
Eu disse à craca, durante a travessia: Eu te saúdo e reverencio,
                                                  Porque és o desgaste e a corrosão
a irmã caçula da morte
o ponto obscuro que resume o sonho extinto.
Ao que jamais soube nem me é ensinado
pelo vento marinho que dilacera o dia,
acrescento a insídia das cracas que danificam
os pilares das pontes sobre as águas e os costados dos navios.
O tempo é um molusco – eu disse à craca da Ponte Rio-Niterói –
e vieste para reduzir o esplendor do mundo.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 21 de janeiro de 2016 -- O TREMOR DA FOLHAGEM

O TREMOR DA FOLHAGEM -- Lêdo Ivo

Isto sempre me espantou:
que possamos recordar.
Nascemos para esquecer
e ver a lágrima evaporar-se
no rosto bem-amado.

Ouvi o mar na escuridão
e o tremor da folhagem.
De nada quero lembrar-me
nem da noite que cai
nem do dia que nasce.

Vi o vento importunar
a janela avariada.
Escutei a noite voltar
com as suas luzes trêmulas.

Vi o miasma mover-se
na água caluniada.
No dia de sol
o cata-vento rangia
como um estandarte.

Vi o que ninguém vê:
a inocência entorpecida
dos seres rastejantes.
E tornei a lembrar.
E tornei a esquecer.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 20 de janeiro de 2016 -- ATRAVESSANDO UM PARQUE

ATRAVESSANDO UM PARQUE -- Lêdo Ivo

Naquele anoitecer me assaltou a ambição
de saber com certeza o que era a morte.
Por acaso encontrei um pássaro na neve
e suas penas frígidas me responderam.
A morte é apenas, isto, esse frio final
enquanto a chuva cai entre os pinheiros
e a noite se aproxima, rodeada de sonhos.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 19 de janeiro de 2016 -- O GUERREIRO FATIGADO

O GUERREIRO FATIGADO  -- Lêdo Ivo

Estou cansado de morrer
quando anoitece e ser levado
pelos sonhos que me rodeiam
como um halo da madrugada.

O galo canta. A estrela cai
no longo céu avariado.
Estou cansado de voltar
a nascer quando a aurora nasce.

Soldado que escuta o clarim
regresso ao quartel estridente
onde se reúnem os homens.

E passo o dia guerreando
a nuvem que me muda em sombra
e o sol fora do meu alcance.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 18 de janeiro de 2016 -- O CARANGUEJO


O CARANGUEJO -- Lêdo Ivo

Como um caranguejo
caminha nos mangues
assim atravesso
o dia dos homens.

Avanço na lama
da noite e dos sonhos,
carregando a pátria
negra dos meus pântanos.

Estou onde estão
a larva e a borbulha,
o bulbo e o miasma.

Na água putrefata
onde Deus se oculta
eu também me escondo.

domingo, 17 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 17 de janeiro de 2016 -- O REFÉM


O REFÉM -- Lêdo Ivo

Deus é o meu refém.
Para libertá-lo
exijo o resgate
da imortalidade.

Deus não é ninguém.
Imóvel na praça
quando a tarde cai
Deus não vai nem vem.

As estrelas passam
e Deus é o silêncio
que habita as galáxias.

Sou o centro de tudo
e guardo um Deus mudo
no meu coração.

sábado, 16 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 16 de janeiro de 2016 -- CONTABILIDADE


CONTABILIDADE -- Lêdo Ivo

Viver é perder a vida.
Mais estou vivo e mais perco.
Na minha vida perdida
quanto mais ganho mais devo.

Quanto mais estou vivendo
Mais cresce o meu não-viver.
À sombra do que estou sendo
mais vou deixando de ser.

Cada vez sou menos mais
e sou mais menos na conta
de somar que me subtrai.

Morrer é perder a morte?
No recorte das montanhas

o crepúsculo desponta.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 15 de janeiro de 2016 -- CEMITÉRIO DO CAJU

CEMITÉRIO DO CAJU -- Lêdo Ivo

Os mortos são como os navios.
Assim como os navios ignoram que estão ancorados nos
                                      portos e suspensos pelas vagas
os mortos não sabem que estão além da vida, respirando
                                                               o vento do mar.

Entre o céu cinzento e as instalações portuárias
a morte é uma sílaba perdida.
Sobre a lápide avariada a lagartixa repousa

mudada em epitáfio.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 14 de janeiro de 2016 -- UM LENÇOL DE LINHO

UM LENÇOL DE LINHO  -- Lêdo Ivo

Deus é o pão e o vinho,
a rosa e o espinho,
o mar e o golfinho,
e a carta de amor
no seu escaninho.
Deus é o passarinho
e a sombra que esconde
os ovos no ninho.
Deus nasce entre as pedras
como um rosmaninho.
Na noite fechada
ou no burburinho
do povo nas ruas
Deus é o caminho.
Deus ajunta a palha
igual a um ancinho.
Deus é branco e puro:
um lençol de linho.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 13 de janeiro de 2016 -- OS SINAIS

OS SINAIS -- Lêdo Ivo

Saibam quantos vivem
neste mundo imenso:
Deus não cheira a incenso.
É no estrume fresco
e na alga viscosa
que devemos ver
os sinais divinos
com os olhos de quando
éramos meninos.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 12 de janeiro de 2016 -- MAUSOLÉU DE FAMÍLIA

MAUSOLÉU DE FAMÍLIA  -- Lêdo Ivo

Agora eles estão finalmente juntos.
As mãos não se levantam no gesto impaciente.
As bocas não se abrem para as discussões intermináveis
que abafavam o rumor do mar magnífico.
E dos olhos que viram as estrelas mais altas
não flui desejo ou pranto.
Eles nada me ensinaram. Não responderam às minhas
                                                                    perguntas.

Foi tateando nas trevas que fiz a primeira carícia
e os sonhos tinham a dureza da água.
Como todos os que jazem aqui, eles nada aprenderam.

A vida e a morte não são lições para nós.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 11 de janeiro de 2016 -- O CAVALO

O CAVALO -- Lêdo Ivo

No campo matinal
um cavalo assediado
pelo zumbir das moscas
mastiga avidamente
o capim do universo.
Os insetos volteiam
no anel azul do mundo
--- esfera sem passado
nos ares momentâneos.
Não há mitologia
espalhada na relva,
que é verde, sem caminhos,
longe das longes terras.
E o cavalo sobrado
da inenarrável guerra
e da paz defendida
à sombra das espadas
mata a fome no campo
onde não jazem mortos
nem retroam clarins.
Sua crina estremece.
E seus cascos escarvam
a plácida planície
coberta pelos pássaros.
Já sem fome, relincha
para os céus que não guardam
as fanfarras e flâmulas
e a fumaça da História,

e se muda em estátua.

domingo, 10 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 10 de janeiro de 2016 -- MARÉ


MARÉ  -- Lêdo Ivo

Na praia de papel
respiro o ar do mundo.
Letras.

Na ortografia vive
todo o meu mistério.
Tinta.

O mar azul vomita
algas e medusas.
Signos.

A sujeira do mar
é meu patrimônio.

Canto.

sábado, 9 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 09 de janeiro de 2016 -- AS LINHAS DO MAR

AS LINHAS DO MAR -- Lêdo Ivo

O amor é para mim um horizonte de água.
Cadeias nos pés nus, rastros na areia
onde o sono é esmeralda, e o gesto é estátua
de solidões e aclives transtornados.

Estamos caminhando, e é mais alta que o mar
diante de arquipélagos secretos.
O amor se resume em se ir de mãos dadas

cobertos por um sol que torna o dia estático.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 08 de janeiro de 2016 -- SONETO A UMA FOTOGRAFIA DO MAR

SONETO A UMA FOTOGRAFIA DO MAR  Lêdo Ivo

O oceano suplica eternamente
novas ilhas que o vejam nas alturas
onde o olhar temerário se apresente
como a luz que ilumina terras puras.
E eu que nada te dei, ó mar, a quilha
de minha alma encaminho aos teus países
para que tuas águas banhem a ilha
dos meus sonhos maiores e felizes.
Palácio n’água, como o eterno agora,
ela me espelhará nas ondas mundas
e o século será menos que a hora
em teu cenário de horas tão profundas.
     Ó mar enfeitiçado, dá à minha alma
     o que só tens nas verdes ilhas: calma.


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 07 de janeiro de 2016 -- O AQUEDUTO


O AQUEDUTO -- Lêdo Ivo

Somente o essencial,
que o resto não tem importância.

Mesmo que o céu seja uma hipótese,
nós te queremos na fímbria de nossas almas,
que o resto são ondas.

Houve milênios, até que chegássemos
como uma repetição de todas as repetições,
estátuas de sonho e poeira.

Chegamos como os inesperados numa plataforma ferroviária
como a carne chega para o amor ao cair da noite
como a chuva que rebenta nas profundezas do céu.

Pássaros voavam sobre a carniça.

Então fomos ver o aqueduto.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

365 dias com poesia, 06 de janeiro de 2016 -- COMPASSO DE CALMARIA

COMPASSO DE CALMARIA -- Lêdo Ivo

Já não falo de amor aos céus de pedra
nem firo as águas com os remos sujos.
Aprendi a viver.

O pulso de meus dias canta em mim
e a poesia é o espelho do espírito.
Completei-me, afinal.

Das altas persianas vejo o sol
ao compasso dos bosques inativos.
Paisagens são relâmpagos.

Agora, até os anjos compreendem
minha necessidade de estar só.
Sou incomunicável.

Porém esta conquista não é dádiva.
Lutei, buscando a ilha onde pudesse
enterrar meu tesouro.

Assim estou, mais pobre do que nunca.
Tudo o que fulgurava está oculto
e jamais volverá.

Vertigem de não ser meu próprio hóspede
nem ter memória em cego firmamento,
aqui estou, sozinho.

Nem pecados, nem gestos, nem trombetas
exploram minha lenda. Estou à espera

deste reino que é a morte.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Eugénio de Andrade -- Sem título, POETAS PORTUGUESES 2016

As casa entram pela água,
a porta do pátio aberta à estrela
matutina, em flor
os espinheiros,

nas janelas apenas a cintilação
juvenil do mar antigo,
esse que viu ainda as aves
do mais errante de quantos marinheiros

perderam norte e razão
a contemplar a refletida estrela
da manhã;
só na morte não somos estrangeiros.

José Tolentino Mendonça -- PÉRGANO (RUÍNAS DOS HOSPITAL DE ASCLÉPIOS), POETAS PORTUGUESES 2016

Na lâmina, no mortal fio da lâmina
caminham pensamentos, avisos, envios
esses nomes que sem querer condenamos
à terrível escuridão de um abrigo
no fundo do nosso corpo

Por vezes adoecemos desse mal
Passeamo-nos à sombra de árvores mitológicas
silenciosos e vagos pensando
como de lugar nenhum onde estivemos
alguma vez regressamos

Paulo Teixeira -- O ESPÍRITO E O TEMPO, POETAS PORTUGUESES 2016

Pudesse elevar-se o espírito acima do tempo,
ser o mundo só um espetáculo comovente,
qualquer coisa de especioso abaixo das nuvens,
onde a luz ao incidir fosse pura estesia.

Estábulo onde fechados esperamos o drama
por encenar no presente espaçoso que é nosso:
chaminés, gólgotas, campos de batalha,
domínio de prazer forense, breve e matizado

pela dor, onde, providos de um costume,
fomos instruídos em verdades que se ocultam
e sem outra instância de apelação que a morte,
em busca de conforto pelo fim do dia.

Pudesse elevar-se o espírito acima do tempo,
consigo levando nos dedos um pouco de terra queimada;
por pudor não olhasse embaixo o mundo,
já sem relógio e informes profecias,

envolto em luz espectral e fundado no que não existe.

Fernando Pinto do Amaral -- MENSAGENS, POETAS PORTUGUESES 2016

Invisíveis regressam as palavras
na penumbra que desce e que me abraça
quase em silêncio. As ruas da cidade
revelam cada rosto do passado,

cada perfil ou cada olhar -- sorrisos
que setembro segreda e vou sentindo
como se fossem teus, como se ainda
por milagre viesses ter comigo

a mais um bar deserto, a mais um sonho
filho da meia-noite, nado-morto
talvez com este amor. O frio do outono
vai diluindo as margens do meu corpo

numa estrada neblina que submerge
a casa onde viveste, agora imersa
no mar das minhas lágrimas, eternas
como esse teu jardim -- ó atmosfera

envolta em doces mágoas, entre os muros
de séculos e séculos! As escuras
refluem as palavras, as noturnas
mensagens do passado ou do futuro.

Adília Lopes -- A LADAINHA MINHA, POETAS PORTUGUESES 2016

Há cem anos
que bordamos
os nossos enxovais
para nenhuma boda
nos nossos quartos
fechados à chave
os nossos noivos
enviuvaram
e andam pelo terreiro
vestidos de preto
com um fumo no braço
e cravo branco murcho
na lapela
as nossa mães
deixaram-nos
a bordar
em silêncio
os nossos enxovais
de brancos que foram sendo
fizeram-se amarelos
como crisântemos
eu e minhas irmãs
choramos a nossa sorte
copiosamente a fio
dia após dia
o pavio das nossas velas
esfuma-se
as nossas lágrimas
grossas como punhos
formam uma ribeira
que corre para o nosso mar
e o nosso mar?

Gil de Carvalho -- GUERRA & PAZ, POETAS PORTUGUESES 2016

Pedidos sacrifícios, as imagens
Foram trazidas na maré, enxutas.
Treme a escada torpe, e o cão ladra --
São os antepassados, fixos,
Na água das janelas.
Que podemos fazer, o fumo
Entra nas casas é preciso
Uma porta que nos leve ao mar.

Vergílio Alberto Vieira -- PIER PAOLO PASOLINI, POETAS PORTUGUESES 2016

De assim no olhar
Suster a pedra incandescente
Com que o Tibre
Pelo ocaso insinuou a aurora Entre armações
De terra ensombrecido esquece
O mais belo dos mortais
Agora que a sísmica luz contra a folhagem hirta
A face nua invoca
E a perfeição já só em parte finita
À beleza concede a rosa fixa
Em tudo pensa
Vagas dominações percorre o vento
Os vestígios cansam
E é então que para o augúrio das águas
Fluem as aves tomando espécie

De aparência nada acontece
Ouvir de resto foi
Em vida a hora extrema da paixão.

Luís Filipe de Castro Mendes -- FERNANDO PESSOA (1888 - 1935), POETAS PORTUGUESES 2016

Disfarçamos os gestos nessa bruma
que o corpo sabe rente ao coração
-- como o perfeito mar morre na espuma
e vem ouvir-se em nós a escuridão.

Perfeito o magoado som de pluma
que modula em seu arco a solidão.

só nos sossega a hora mais escura
e os passos que em perdido rumo vão.

Sorriem já as máscaras ao lume,
solto o mundo em redor do coração
-- e correm no seus braços de negrume
os tons dissimulados da canção.

Que mais do que da terra em que se nasce,
desta escura canção a alba faz-se.

Nuno Júdice -- NOTURNO, POETAS PORTUGUESES 2016

Restos de luz, de vésperas dissipadas,
no horizonte desenham linhas ensanguentadas;
nuvens vagam-me a alma, cansadas,
num rosto marcado por pálidas madrugadas;

a música de órgãos de barbaria, emudecida
pela moeda da loura criança entorpecida;
e o foco da luz, nos plátanos -- da luz tecida
de ruivos reflexos na folhagem apodrecida;

troncos flutuando nas lagoas crepusculares
ansiando céus claros, o azul dos mares
-- e morrendo num roxo pisado de lagares:

pura ausência de espaços e de ares.
Que noite recebe, em silêncio, a última sombra
dos subterrâneos lençóis que a mãe assombra?

Helder Moura Ferreira -- PERTO MUITO PERTO, POETAS PORTUGUESES 2016

Chego ao pé do limite,
o corpo cansado
traz as setas
do sono e a noite
esconde a alegria.
Onde tudo acontece
passam as imagens,
pressinto as nuvens
sobre os navios, o eco
de sons de aviso.
Como se inquieta
a cabeça tocando outra
na luz atravessada de luzes. Chego à ponta
 dos dedos, à esquina
da memória, adormeço, não
adormeço, canto
para adormecer.
tudo parte de baixo
para a paisagem
do teto, alegro-me
porque não é preciso
falar. O que sentes
está aí tão à vista,
desaba sobre os olhos
o falso espaço
da casa. E a manhã
perde a luz
que só havia nas palavras.

Al Berto -- OFÍCIO DO ÓPIO, POETAS PORTUGUESES 2016

é do sangue corrompido do touro imolado que nascem as abelhas
dizias também: o linho queima ferozmente as entranhas da terra...
ouvia-te fascinado, metido no casulo febril do ópio

um fino aparo de marfim arava, incansável, as paisagens
a terra fendia-se obscura e paciente
pedia um regresso imediato...

... invoquei a chuva e o Oráculo dos Amantes, para consolo de nossa dor
mas o delírio sacudia irremediavelmente as loucas aveias
... hesitei, embora soubesse que as mãos irradiavam uma promessa de frutos

todas as insônias foram estradas dúcteis a percorrer
constelações anunciavam uma outra direção
e houve o abandono à sede dos grandes e rubros solstícios

anoitecia por onde passávamos
foi então que Júpiter se decidiu a dar às serpentes negras o mortal veneno

António Franco Alexandre -- Sem título, POETAS PORTUGUESES 2016

é no meu corpo que morreste. agora
temos o tempo todo
ao nosso lado, como
um lodo onde dormitam as

conhecidas maneiras.
algumas nuvens se aproximam, e depois
se afastam, numa duvidosa
manifestação de imperícia;

os animais falantes
atravessam corredores iluminados,
embarcam na

sossegada lembrança dos sonetos,
o leve sono que pesou no dia.
é no seu corpo que morreste, agora.

João Miguel Fernandes Jorge -- Sem título, POETAS PORTUGUESES 2016

No verão é terrível o meu riso,
quando o lugar da flor e o lugar
do fruto coincidem, isto é, possibil
idade de árvores. Repara.

Quando o sol surgir em maio, da
coragem restam olhos infatigáveis,
o assalto dos ventos,
um estranho muito claro.

Acredita. A sombra da verdade
está nos meus lábios, como limão
de ouro ou sangue construindo
a harmonia, árido verão.

Como conhecemos esta terra.
Sombra paciente. Insólito país.

Nuno Guimarães -- O PÃO, POETAS PORTUGUESES 2016

Não é ainda um seio
mas quase, na brancura.
porém, onda de leite
a branca levedura.

um mecanismo incerto
de ferro e de madrugada.
a fome e o excesso
futuros. na seara.

a fome e a carência
de sol (o) para a boca.
não é ainda um campo
de areia ou terra solta.

um campo descampado
um campo om bolor.
é arte que se move
minéria como a água.

engenho de palato.
alvéolo de pulmão.
respira-se o exemplo
de sol. oxigênio.

não é ainda um círculo
branco por toda a mesa:
manchado na toalha
de sombra e aspereza.

não é ainda uma ave
descendo sobre a pele:
um mecanismo triste
movendo a boca breve.



Eduardo Guerra Carneiro -- ZERO, POETAS PORTUGUESES 2016

Igual a zero a distância ao infinito
Impossível de tocar com nossos braços

Valores estranhos aos corpos
ignorados noite e dia

Zero a distância
zero o próprio espaço

Para quê voltar aos caminhos sem regresso
quando nossas mãos agarram toda a vida?

Vasco Graça Moura -- presente do indicativo, POETAS PORTUGUESES 2016

entro na cozinha. ela está no meio dos legumes,
lava e enxuga folhas tenras de alface, endívias
de oblonga contextura, corta a cebola às
rodelas, pica um ramo de coentros,
hesita um pouco sobre o roquefort, é certeira no vinagre e no sal,

e prudente no azeite. o ovo cozido espera a sua vez e a
saladeira aguarda na mesa junto aos azulejos brancos.
ela procura os talheres de madeira na gaveta,
pede-me qualquer coisa, a lâmina reluz sobre a tábua, perto do pão.
a preparação da salada requer vários gestos precisos

e uma poética discreta nos brilhos frisados, nos
paladares, pela janela chegam os ruídos da rua,
campainhas de bicicleta, ressaltos de uma bola.
o cão dormita no sofá. uns versos populares comparam
os olhos dela a azeitonas pretas.

Fátima Maldonado -- CANÇÃO PARA O PRESIDENTE DO BURKINA, THOMAS SANKARA,TRAÍDO PELO SEU AMIGO BLAISE COMPAORÉ, POETAS PORTUGUESES 2016

Sankara tinha um amigo
chamado Compaoré
Sankara tinha o reino
mais pobre do continente
e chamava-lhe "a pátria dos homens íntegros".
Campaoré era a sombra de Sankara
e Sankara desvendou o seu nome verdadeiro
a um companheiro de armas
esquecendo que nem os deuses o fazem.
E no Olimpo negro todos riram de Sankara --
o a alma orgulhosa --
por não ter resguardado s sua própria sombra.

365 dias com poesia, 05 de janeiro de 2016 -- A FLECHA

A FLECHA -- Lêdo Ivo

Que nuvem te fez
em forma de arco?
Que céu modelou
tua flecha no ar?

Somos feitos para a morte
temos uma boca para a oração
nossa voz aguarda o canto

A bruma te levanta
da jaula do sono.
Por que estás unânime
como a relva ao crepúsculo?

Somos o sofrimento necessário
expiamos a culpa de todos nós
o sonho nos multiplica

Que olhar é o meu
entre tantos olhares
que me fitam dormindo
o sono dos outros?

Jogávamos futebol à tarde
corríamos até o riacho
ignorávamos que íamos morrer

Que terra, que fábula
pajeiam meu sonho?
Que banda de música
no despertar que espero?

Somente agora aprendeste meu nome
por que estamos juntos se o sono virá?

por que nos amamos se não somos um só?

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

António Barahona da Fonseca -- REMINISCÊNCIA DE RAINER MARIA RILKE, POETAS PORTUGUESES 2016

O Gênio é monótono e monástico
Demoníaco santo   eis o homem
O tal que os deuses amam morre jovem
Maduro fim d'Outono azedo drástico


Múltiplo-primavera fantasmático
Adolescente azul ou lobisomem
por amor do amado os deuses põem
Quatro estações no caos isoexótico

Bem-vindo o sofrimento distraído
Que exprime a vida curta que convido
Ao jogo a jardinar enquanto cismo

Podando rosas brancas d'ora avante
à luz do olhar do Anjo faiscante
A tesoura a pairar no vasto abismo

Luiza Neto Jorge -- RITUAL, POETAS PORTUGUESES 2016

a jarra tombou
a água correu sobre a mesa

as flores calaram-se aos poucos
o espantalho tocou o acordeão

a criança cansou-se do vento
desatou as sandálias

o mar meditou duas vezes
qual o horizonte

do sótão a galinha presa
viu um avião voar

uns quantos vestiram-se de negro
viveram da morte dos outros

suicidou-se uma sombra
debaixo do meu pé

a mulher calçou-se de branco
para a ressurreição

o país desbotou
no mapa das escolas

amor que esperas de mim
a não ser eu

Armando da Silva Carvalho -- A INUNDAÇÃO, POETAS PORTUGUESES 2016

O mar invade Lisboa mas por dentro
enquanto o vento enfeita
as filhas dos polícias
e há um vago frio nos olhos
mais dementes
destas tardes.

As crianças vestem
coloridamente
se mórbido e inesperado
séquito.

Mas nas ruas da Baixa
nota-se uma abundância
palpável

um rio vagamente doloroso

um mar por dentro.

Nas lojas de fazendas
na menina da caixa
no fastio amarfanhado
dos porteiros.

Gotas marítimas notavam-se
no brilho das pulseiras
de uma amante
líquido miúdo mas brilhante
até nas varizes das peixeiras.

Há quem diga sol
um sol insólito é bem certo
mas nota-se até na cauda dos insetos
piedosas solícitas gotas de humi(I)dade.

O mar invade tudo mas por dentro.

Fernando Assis Pacheco -- LÍRICA DE PARDILHÓ, POETAS PORTUGUESES 2016

Então acordo e sinto a meu lado
o esplendor tranquilo
da amada que respira
adormecida deitada sobre o flanco
vertendo a prata dum sorriso

nas ravinas da noite

esferas cantam a alegria
é um sítio de grama rociada

e passam horas
durante as que da rua
ouvindo vozes turvas
eu ficarei teimando
na claridade a todo o preço

de que me falavam as aves

José Augusto Seabra -- TRÍPTICO DA TRISTEZA, POETAS PORTUGUESES 2016

I

Desce a tristeza inútil
à profunda
serenidade intacta.

Desce, tristeza,
inunda
a verdade exata.

E desce, tristeza, ainda
visível
e compacta.

II

Soluço-te, tristeza,
como longa
ferida silenciada
e grave.

Irrompes-me
e sucumbes:
frialdade.

Um bafo
de alegria.

E só.

Um nada.

III

Cai-me
a tristeza aos pés.

E não me baixo.

Manuel Alegre -- PORTUGAL EM PARIS, POETAS PORTUGUESES 2016

Solitário
por entre a gente eu vi o meu país.
Era um perfil
de sal
e abril.
Era um puro país azul e proletário.
Anônimo passava. E era Portugal
que passava por entre a gente e solitário
nas ruas de Paris.

Vi minha pátria derramada
na Gare de Austerlitz. Eram cestos
e cestos pelo chão. Pedaços
do meu país.
Restos.
Braços.
Minha pátria sem nada
sem nada
despejada nas ruas de Paris.

E o trigo?
E o mar?
Foi a terra que não te quis
ou alguém que roubou as flores de abril?
Solitário por entre a gente caminhei contigo
os olhos longe como o trigo e o mar.
Éramos cem duzentos mil?
E caminhávamos. Braços e mãos para alugar
meu Portugal nas ruas de Paris.

Helder Macedo -- ORFEU, POETAS PORTUGUESES 2016

Não é bastante
que eu reconheça a minha solidão
e a preze como o início dum caminho.
Não é bastante
ser livremente tudo quanto sei
e estar aberto a tudo que serei.
Tudo o que fui e o que sou e o que serei
já são iguais
no tempo do meu modo ignorado.
Quero abrir o que as palavras não descrevem
por já não responder ao sim e ao não
do meu espelho conhecível.
Já não me basta apenas dar um nome
à morte que me cabe enquanto vivo
porque morrer é ter perdido a morte
para sempre
tornando sem sentido o sim e o não
com que me circundei e defini-me.
Conheço-me as fronteiras.
Quero o resto.


Ruy Belo -- FIGURA JACENTE, POETAS PORTUGUESES 2016

Meu rosto nasce desta condição horizontal
de quem tem a cobri-lo todo o seu cansaço
Deus teve para mim morte mais rasa
do que a morte que o sol encontra entre as águas
Desfez-se a curva última da estrada
na ficou após meus gastos passos

Ninguém morrera ainda tanto como eu
só tive de estender um pouco mais o corpo
Sobre o meu rosto passam uma a uma as gerações
e vem lavar-me a água os velhos pés

E diz-me Deus, tão acessível como o mar das praias:
-- Tu és cada vez mais aquilo que tu és

Há entre as oliveiras sítio para o sol
e a brisa da infância canta rindo dos ramos
entre o cheiro do giz e as canções da escola

Deus é perto de mim como uma árvore

E.M. de Mello e Castro -- A DECISÃO DO GRITO, POETAS PORTUGUESES 2016

Decidiu-se que a minha voz seria
um grito
e a minha mão uma arma.

Resolveu-se que o grito seria tudo
o que eu pensasse
e a morte o que agisse.

Um dia apareci homem entre os homens,
e ninguém se espantou,
antes se congratularam estatisticamente.

Só eu, perdido entre tantos gritos
e estrangulado
pelas minhas duas mãos peludas, só eu
estremeci de pavor e fugi, fugi.

Durante anos parti os espelhos
com murros poderosos;
durante anos seguidos ensurdeci aos berros
aos berros!

Depois esqueci-me de como era. Só sei gritar,
gritar, gritar, e conto já com milhares de mortes
e destruições perfeitíssimas.



Albano Martins -- REQUIEM, POETAS PORTUGUESES 2016

Eis que para ti floriram as rosas.
Crisálida no tempo, a tua vida
perfumou-se de sombra e de silêncio.
Com suas crinas verdes, seus
frutos ácidos, com suas
esporas de vento, a primavera
cobriu de borboletas o teu corpo,
e no teu sangue, pálidas,
as espigas da morte amadurecem.

Maria Alberta Menéres -- SE ENTRANDO NO RETRATO A SOBRANCELHA, POETAS PORTUGUESES 2016

Se entrando no retrato a sobrancelha
destoa da harmonia de um passado
e o brinco pendente de uma orelha
dorme tranquilo em estojo acolchoado,

se a cadeira ali nova agora é velha
e a névoa do peitilho foi bordado
nesse tempo em que em pouco se assemelha
ao tempo que hoje em dia nos é dado,

não quer dizer que a vida tenha sido
inútil e perversa   ou desfocada
do retrato só visto e nunca lido

por quem da vida saiba a senha errada.
Terei apenas eu sobrevivido
para ler tal silêncio em voz calada.


Fernando Echevarría -- LA FEMME A LA ROSE, POETAS PORTUGUESES 2016

Sabemos que são sombras quanto amamos.
Sombras de estradas, de rios e planetas.
E até as sombras que nos vêm nos ramos
sombras também, embora mais discretas.

E a sombra da mulher de que gostamos
é a sombra ainda, como a das valetas
em que de si e de nós a desnudamos,
cobrindo-nos de sombra e de violetas.

mas a ternura com que amamos esta
teoria de sombras assombrosa,
sendo sombra também, aviva a festa

em torno de outras entre as quais repousa,
fresca fruta, sentada ao pé da cesta,
a sombra da mulher que aspira a rosa.



João Rui de Souza -- PONTO DE FUGA, POETAS PORTUGUESES 2016

Procuro a minha voz e não a encontro.
Procuro o meu silêncio e não o tenho.
Ao desencontro vem o desencontro,
do maior ao menor é o meu tamanho.

No alto das esferas rolam as esferas,
ermo adormecido, doida escuridão.
Procuro ali a voz e não a encontro.
procuro o meu silêncio e não mo dão.

A espaços vi tão perto o meu querer,
a dúvida desfeita, puro abraço,
que logo pensei eu que a voz viesse
ou chegasse o silêncio ao meu cansaço.

Mas não. No grande desencanto (e frio)
em que na rua, gasto, me detenho,
procuro a minha voz e não a encontro,
procuro o meu silêncio e não o tenho.


365 dias com poesia, 04 de janeiro de 2016 -- SONETO DE AZUIS


SONETO DE AZUIS  -- Lêdo Ivo

Horizontes, colinas, azulverde
e mar visto dos altos, de penedos!
Tudo aquilo era meu, mesmo os rochedos
onde a vaga imitava o florescer

de primícias marinhas, e o crescer
de ciclone em falésias de degredos.
Tudo aquilo era meu, mesmo os segredos
do mar não visto, mais azul que verde.

E por ter tanto foi que me perdi,
rolando pelo abismo sem que o ar
em mim pregasse as asas do milagre.

E depois disso nunca mais me vi.
Sou um fantasma. Busco-me no mar,

trilha à procura da água que a consagre.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Alberto de Lacerda -- SETE POEMAS, POETAS PORTUGUESES 2016

Só ficarão talvez sete poemas
De toda esta ago nia caos e luto
(Amor eterno a que negaram fruto,
Não por estéril, mas por ínvias penas);

As alegrias grandes  e pequenas,
Não do amor somente, rosto enxuto,
Foram raras, foi alto o seu tributo;
Secou a angústia as lágrimas serenas.

Fome, fome de pão, fome de amor,
Quebrou-me o píncaro de plenitude
A que só raro ergui asas de alvor.

Versos puros em vez de juventude?
Antes a vida, a luz, o seu esplendor.
Versos? Paguei-os. Agonia e luto.